Capítulo XVIII

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 A cada dia, eu me acostumava mais com a companhia de Garkah na enfermaria. Mesmo que nossa comunicação fosse precária, ele parecia entender tudo só de olhar para mim, e me peguei fazendo o mesmo. Dois dias depois de eu ter começado a trabalhar na enfermaria, ele parecia bem melhor. Recuperado o suficiente para me ajudar enquanto eu atendia outras pessoas. Claro que guardas ficavam rodeando incansavelmente, mas ele não parecia se incomodar. Ele me ajudava a carregar as bacias com água para lá e para cá enquanto eu cuidava dos pacientes com ferimentos, lavava as ataduras ensanguentadas quando necessário, moía as ervas medicinais para que eu aplicasse em ferimentos, ou colhia as ervas ele mesmo na pequena estufa dos fundos da enfermaria para que eu pudesse medicar alguém. Garkah era completa e absolutamente paciente e calmo, mesmo quando os thoranianos faziam cara feia e lançavam-lhe palavras ofensivas. Ele se mantinha inabalado. Pensei que sua calma fosse infinita, até uma vez, em que um aldeão tentou tocar em minha coxa enquanto eu lhe atendia. A mão de Garkah segurou o pulso do homem com força o suficiente para estalar, antes mesmo que ele conseguisse me tocar. Eu não tinha visto nem mesmo ele se aproximar, até que ele estava ao lado do homem, rosnando claramente uma ameaça em brakbariano. O homem empalideceu e afastou-se de mim, chamando outra enfermeira para atendê-lo. Eu e Garkah nos encaramos por alguns instantes até que ele desviou o olhar para o chão, seu rosto tomando uma expressão de culpa. Ele ficara envergonhado por ter sido agressivo na minha frente.
 Garkah, que nunca me tocava sem que eu permitisse antes, que tomava cuidado para nem mesmo esbarrar em mim. Aproximei-me dele, erguendo a mão para tocá-lo, mas parando antes de fazê-lo, esperando ele consentir. Seu olhar se ergueu para mim, e ele se aproximou da minha mão, deixando que ela pousasse em sua bochecha. A barba por fazer fez cócegas em minha palma calejada, acariciei-lhe a pele com o dedão. Seu rosto se inclinou suavemente na direção da minha mão, seus olhos se fecharam devagar enquanto sua cabeça se virava mais um pouco, até que meu dedão tocou seus lábios, onde contornei delicadamente. Seus olhos se abriram, a cor de mel tão brilhante que eu não consegui me mover, completamente presa naqueles olhos. Meu coração acelerou consideravelmente, eu queria dar mais um passo na direção de Garkah, mas me contive. Percebi os guardas nos encarando com certo espanto. Ambos soltamos um suspiro melancólico ao mesmo tempo antes de nos afastarmos. Aquele brakbariano podia nem saber, mas estava despertando em mim algo que eu jamais havia sentido por ninguém. Talvez desde o instante em que nos vimos pela primeira vez, algo começou a desabrochar em meu peito, e agora as pétalas daquele sentimento se erguiam na direção dele, como um girassol seguindo a luz do sol.
 Vez ou outra Thuban aparecia por lá para me entregar almoço ou me levar para comer fora. Ele se tornou uma companhia constante também. Depois que comprei a casa, me mudei para lá no dia seguinte. Não tinha muito que levar comigo, e por esse fato, Thuban fez com que eu andasse pelos mercados para comprar coisas novas, como roupas e enfeites para a casa. Ele parou para olhar alguns temperos que estavam sendo vendidos em uma barraca, quando pela minha visão periférica um brilho chamou minha atenção. Virei a cabeça e vi a barraca ao lado vendendo todo tipo de joias, de ouro, prata, bronze e outras pedras preciosas. O brilho que eu avistara fora de um medalhão prateado, do tamanho de uma moeda. Nele estavam esculpidas labaredas consumindo um botão de rosa. Era uma arte delicada e estonteante. E por algum motivo, me lembrei de Garkah. Eu conseguia vê-lo nessa imagem. Era selvagem e perigoso como o fogo, mas belo e delicado como uma rosa. Comprei-o então e coloquei imediatamente em meu pescoço, ocultando o medalhão sob minha roupa. Pelo fato de ser tão parecido com ele, eu achei íntimo demais para que eu deixasse exposto. E ali ele ficou por dias.
 Consegui comprar coisas o suficiente para uma vida inteira. E somente quando Thuban não estava junto comigo, eu comprava alguns brinquedos infantis, pequenos quadros de filhotes de animais e deixava-nos escondidos no quarto de criança de minha casa, que pelo Céu, logo seria ocupado.
 "Pode ser que ela não goste de mim.", falei baixo enquanto tirava última atadura de Garkah, seu ferimento cicatrizado o suficiente para que não precisasse mais delas. Analisei o ferimento com atenção. "Já está bem melhor, vê?" apontei para a cicatriz. Seu olhar abaixou para o próprio peito, e ele passou a mão sobre o grande risco que agora lhe traçava desde o peito até o abdômen.
 Coloquei uma mecha de meu cabelo atrás da orelha, que rebeldemente havia se soltado do coque que eu fizera naquela manhã.
 "Ela pode estar feliz nas fazendas, não sei que bem eu poderia fazer em simplesmente surgir em sua vida e a confundir profundamente.", continuei a desabafar, mesmo que ele não entendesse. Mas ele me olhava como se o fizesse. "Não sei o que fazer, Garkah. Quero minha Caeli de volta. Mas talvez eu não tenha mais esse direito."
 Ele inclinou a cabeça e suas sobrancelhas se uniram. Meu tom de voz triste o confundiu. Respirei fundo e balancei a cabeça. Dobrei as ataduras que havia tirado dele e as coloquei sobre o leito no qual ele estava sentado. Vi sua mão erguida em minha direção, com a palma voltada para cima. Coloquei minha mão na dele e exibi um leve sorriso com sua tentativa de consolo, mesmo que não soubesse do que se tratava. Senti-me um pouco melhor por tê-lo ali.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora