Invídia

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Abro os olhos lentamente, leve, descansada, como se tivesse dormido por dias. Espreguiço-me e me sento, Beatrice também está acordada, mas ao contrário de mim parece exausta. É, consigo entender, ela levou um tiro, não eu.

— Não dormiu bem? — pergunto e começo a reparar no pequeno quarto onde estamos. Há duas camas uma ao lado da outra, duas mesas de cabeceira para cada uma delas, as paredes são de madeira com cor de barro vermelho, há uma penteadeira com um espelho acima, o colchão é muito melhor do que o que eu tinha na Audácia.

— Eu apaguei. — diz num suspiro. — Mas acho que não foi o suficiente. — caminho até ela, puxando a manga da sua blusa para conseguir ver os pontos.

— Vai precisar de alguns remédios. Está doendo muito? — ela esconde a cicatriz novamente e balança a cabeça.

— Não muito. — Beatrice está um pouco estranha, não me olha nos olhos, não está reclamando, não está querendo saber de tudo o que sei. Muitas coisas aconteceram ontem, e talvez, seja por isso. — Onde guardou sua arma?

— Embaixo do colchão. Espero que ninguém a veja. — ela tira a sua arma da cintura e faz o mesmo que eu, me arrancando uma boa risada. Começa a vestir a mesma roupa que usou ontem e eu acho um pouco nojento. — Não acredito que dormiu com a arma! Foi por isso que não dormiu bem.

— Eu me pergunto como você guardou a sua ontem! Depois daquele chá relaxante não pensei em mais nada. — dou de ombros e começo a desembaraçar meus cabelos, acho que estou horrível.

— Eu me concentrei nisso. Foi a primeira coisa que fiz quando ficamos sozinhas. — nossa conversa acaba quando alguém bate na porta. — Pode entrar!

— Becky! Você ainda está de... — ela aponta para minha roupa. Ontem nos deram um tipo de vestido para dormirmos, não vejo mal algum nele. — Esse negócio é transparente...

— Eu não vou vestir as mesmas roupas de ontem! — digo. — Estão sujas de sangue.

Ela me olha com raiva e se vira para porta. A porta se abre e Tobias coloca metade do corpo para dentro. Ele está usando a mesma calça jeans de ontem, mas veste uma camiseta vermelho-escura no lugar da preta, que provavelmente pegou emprestada de alguém da Amizade. A cor fica estranha nele, viva demais, mas, quando ele apoia a cabeça no batente da porta, vejo que não ficou tão ruim assim.

— Os membros da Amizade vão se reunir daqui a meia hora. — Ele contrai as sobrancelhas e diz, em um tom dramático: — Para decidir o nosso destino.

Balanço a cabeça.

— Não acredito que nosso destino está nas mãos de alguns membros da Amizade... — faço uma careta.

Tobias ri e entra, sentando na beirada da cama de Beatrice.

— Eu também não. — sorri para mim e depois se vira para minha irmã. — Ah, trouxe uma coisa para você.

Ele desenrosca a tampa de um pequeno frasco e lhe oferece um conta-gotas com um líquido transparente.

— É remédio para a dor. Tome uma medida cheia a cada seis horas.

— Obrigada. — diz baixo.

Assisto a cena, sentindo mil coisas diferentes e todas elas são ruins. Ontem me declarei para ele, falei com todas as palavras para que ele ficasse com minha irmã, embora torça para que os dois não deem certo. Não quero que fiquem juntos. Não quero.

— Como vocês estão? — ele corta meus pensamentos. — Becky?

— Ah, eu... — analiso, não sei o que responder, é difícil falar como estou. — Eu estou bem, apesar de tudo.

É mentira, eu não sei o que estou sentindo no momento, só de pensar nisso começo a ficar com raiva, como depois de tudo eu estou assim? Sem reação alguma?

— Nada do que aconteceu ontem parece real. — diz Beatrice. — Parece que estamos de passeio aqui na Amizade.

— Só sabemos que não é um passeio porque Becky está aqui. — começamos a rir e eu percebo o que ele está fazendo, tratando-nos com leveza. Está preocupado conosco. — Ela odeia esse lugar.

— Nunca pensei que falaria isso, mas... Eu gostei daquele sonífero. — levanto indo em direção a porta,
não quero ficar aqui interrompendo os dois. — Vou ver se me arranjam uma escova de dentes.


Tris

Levo o conta-gotas até o fundo da garganta. O remédio tem gosto de limão velho. Becky anda até a porta com seu vestidinho solto atraindo o olhar de Tobias para ela. Seus cabelos balançam e caem sobre seus ombros quando o joga para frente. Nem parece que estava numa guerra ontem. Tobias acompanha sua caminhada até ela bater a porta.

— Como você está, Beatrice? — ele volta a olhar para mim. E eu quero que ele olhe para mim.

— Você acabou de me chamar de Beatrice?

— Achei que seria legal, para variar. — Ele sorri. — Não colou?

— Talvez só em ocasiões especiais. Dias de Iniciação, Dias de Escolha... — Paro de falar. Ia listar mais alguns feriados, mas só a Abnegação os celebra. Acho que a Audácia tem seus próprios feriados, mas não sei quais são. De qualquer maneira, a ideia de celebrarmos qualquer coisa agora parece tão absurda que prefiro não continuar.

— Está combinado. — Seu sorriso desaparece. — Como você está, Tris?

É uma pergunta normal, depois de tudo por que passei, mas fico tensa, com medo de que ele possa ver o que se passa dentro da minha cabeça. Ainda não falei com ele sobre Will. Quero contar, mas não sei como. Só a ideia de pronunciar as palavras faz com que eu me sinta tão pesada que poderia quebrar as tábuas do chão. Rebecca não falou nada a respeito depois da bronca que levei antes de encontrarmos meu pai e Caleb. Talvez ela não saiba o quanto isso me afetou, e eu não a culpo. 

— Estou... — Balanço a cabeça algumas vezes. — Não sei, Quatro. Eu... — Continuo a balançar a cabeça.

Não preciso contar nada. Posso apenas tentar esquecer. Ele pode me ajudar a esquecer.

— Eu sei — diz ele. — Desculpe, eu não deveria ter perguntado.

Por um instante, tudo em que consigo pensar é Como você poderia saber? Mas algo em sua expressão me lembra de que ele realmente sabe algo sobre a perda. Ele perdeu a mãe quando criança. Não me lembro de como ela morreu, só de ter ido ao funeral. De repente, lembro-me dele, agarrado às cortinas na sua sala de estar, com mais ou menos nove anos, vestido de cinza, com os olhos escuros fechados. A imagem é passageira, e talvez seja apenas a minha imaginação e não uma lembrança.

— Você não achou a resposta da Rebecca estranha? — pergunto e ele balança a cabeça.

— Sim, ela não está bem. — diz pensativo encarando a cama dela. — Aconteceu o mesmo quando Amah morreu. Ela disse que estava tudo bem, que não havia a afetado e de repente ela desabou.

Suspiro. Rebecca nunca foi do tipo de demonstrar sentimentos, mas algumas poucas atitudes a denunciam que ela se importa. Verificar meus pontos toda hora é um deles, e eu fico grata, mesmo tendo um grande abismo nos separando.

— Quando acha que ela vai desabar? — pergunto de novo.

Tobias não responde, se levanta e caminha até a porta.

— Vou deixar você se arrumar.

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Oii

Decidi postar dois capítulos de uma vez para compensar a demora!


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