CAPÍTULO XIV - ROSA

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Priscila estava no caminho para casa de Lilian. Era sábado, estava tarde, mas não havia mais um lugar sequer para Priscila deitar sua cabeça em um colo e chorar até apagar.

Naquele dia, 20 de abril de 2000, Rosa Sousa de Machado havia deixado este mundo para trás.

Era engraçada a maneira que Priscila se enganava ao dizer que sorriria diante o túmulo da mãe, era engraçada a maneira em que mentia para si mesma todos os dias sobre estar conformada. Era hilária a forma como Rosa sequer teria um túmulo.

O câncer a atingiu em pontos incuráveis, onde nem mesmo Deus, em quem Rosa tanto cria poderia consertar.

Naquele ônibus, Priscila percebeu que todas as vezes que desejava que sua mãe morresse, era apenas uma criança desejando que sua mãe nunca tivesse adoecido.

Talvez, se Rosa nunca tivesse adoecido, Vicente nunca teria falecido e ela estaria feliz em casa.

Algo mudou dentro de Priscila aquele dia, algo dentro de sua alma morreu junto com Rosa. A única pessoa que tinha se foi, sua família estava acabada de vez.

Pri estava sem trilha, olhando São Paulo passar diante seus olhos como uma cidade nova.

Sua mãe morreu sem saber que Priscila era amiga de Lilian, ou que estava fazendo cursos de moda, ou que elas estavam saindo da fossa que se enfiaram.

Priscila nunca contou sobre seu possível transtorno alimentar, nem sobre Jade, nem sobre Duca, nem sobre ninguém. Eram duas estranhas dividindo um espaço. Espaço, sim, porque não era uma casa nem um lar.

Rosa sabia o que fez com a vida da filha, e não se arrependeu nem por um segundo. Não mediu palavras ao maltratar a própria criança apenas pela superioridade, não se importou se isso magoava, talvez nunca tenha deixado de olhar apenas para si e olhar para o mundo.

Priscila muitas vezes se perguntou como ela podia fazer o que fazia com alguém que você deveria amar. Muitas vezes mesmo, muito mais do que uma menina deveria se questionar.

Ela era linda, igual Priscila, seus amigos diziam que eram cópias. Rosa nunca gostou dessa comparação, mas nunca se queixou também. Sua filha era indiferente, assim como qualquer criança que se tromba na rua.

Quando tudo isso aconteceu, Priscila era uma menina. Uma simples garota que deveria estar sonhando com o primeiro beijo ou saindo para tomar sorvete com as amigas, por que não era assim?

A morte de Rosa foi mais cedo do que ela programava, afinal fingiu se conformar toda a vida. O que seria dela agora sem esse conformismo?  Que caminho ela seguiria agora que precisava tomar uma atitude?

Foram longas doze horas no hospital, desde a entrada até o momento em que Priscila pôde sair daquele ambiente horrível. Tinha 15 anos, não tinha nem uma assinatura fixa!

Priscila queria ter Vicente por perto agora.

Seu pai nunca foi um anjo, era um cara seco e muitas vezes explosivo, mas amava sua filha e isso era o suficiente. Ela precisava de amor e ele a amava muito, só isso.

Nessas horas, ele daria um abraço paterno bem forte e a diria que vão ficar bem, unidos e fortes. Mas não vão, nunca mais.

Infelizmente, os devaneios das garota não servem para nada além de sofrer, já que o corpo de Rosa estava prestes a ser engolido pela mesma terra que engoliu Vicente.

Era emancipada desde o começo do ano, o que permitia que ela continuasse na mesma casa, mas como que ela pisaria lá novamente após isso?

As roupas de Rosa nas gavetas, os remédios na caneca em cima da geladeira, sua escova de dentes quase nova pois em muitos dias não tinha forças para se levantar, sua televisão, as louças do café de ontem e mais coisas que a esganavam só de pensar.

Priscila já não sabia mais o motivo das lágrimas que corriam por suas bochechas em um choro silencioso, talvez nem quisesse saber. Era tristeza, mas alívio, arrependimento e raiva também.

Soluçava baixo, tentando conter o choro. Tal qual uma criança, sentia seus olhos arderem de medo e frustração.

Saiu do ônibus e caminhou até a casa de Lilian, sentindo cada passo causar dor física. Priscila nunca se imaginou num lugar desses, cheio de árvores e casas que a fazem se sentir tão minúscula, como se fosse engolida pela cidade.

Tocou o interfone e, por coincidência, Lilian o atendeu.

- Boa noite. - Seu cumprimento saiu em tom de dúvida, já que não esperava ninguém.

- Ei, Lili. - Fungou, tentando estabilizar a voz - Posso entrar?

- Claro que sim! Estou vendo um filme e vim fazer pipoca, inclusive. - Liberou o portão, então Priscila só entrou e voltou a chorar.

Rosa jamais saberia por onde os pés de Priscila pisaram. Vicente sequer adivinharia que seus pés ainda pisam, já que deve achar que sua esposa e filha foram assassinadas também.

Andou até a cozinha em silêncio, já que a casa gigantesca parecia vazia.

- Pri! - Sorriu, estava cheia de bobes no cabelo e máscara calmante no rosto - O que houve? - Seu rosto murchou quando viu os olhos de Priscila encherem de água, foi correndo ao seu encontro para abraça-la.

Pri não disse nada, apenas apoiou a cabeça no ombro da loira e se deixou desabar. Chorava como se tivesse nove anos novamente, sentia a cabeça latejar de dor e soluçava alto.

Tudo o que Lilian fez foi não solta-la, não questionar e nem afirmar nada.  Passado alguns minutos disso, Priscila finalmente se desvencilhou dos braços de Lili e deu um sorrisinho triste.

- Vamos para o meu quarto, tudo bem? - A morena assentiu, então Lilian pegou o balde de pipoca e atou sua mão livre com a de Pri, a guiando até o cômodo - O que aconteceu?

- Minha mãe morreu, Lili. - Sentiu que ia voltar a chorar, mas pigarreou para se estabilizar.

- Ah, meu Deus... - Engoliu o seco. Lilian sabia dar conselhos amorosos, sobre moda e até sobre fama, mas sobre morte...

- É, eu não sei o que eu faço agora. - Admitiu. As garotas trocaram olhares tristes, os olhos castanhos de Pri estavam pretos, como se a alma tivesse ido embora.

Lilian ficou alguns segundos em silêncio, pensando. Era difícil, já que o máximo de perda que teve na vida foi seu peixinho beta.

Tobias, que estava cochilando na cama, se aproximou de Priscila para receber carinho, como se soubesse que a garota não estava bem.

- Vem morar comigo. - Lili resolveu, mas Pri começou a dar risada - O que?

- Você está falando sério? - A loira assentiu - Eu não posso fazer isso!

- E por quê não?

- Porque é loucura. - Retrucou.

- Já estamos fazendo uma loucura juntas, por que não fazemos duas? - Naquele momento, Priscila parou para pensar. Não tinha muito a perder, afinal.

- Eu posso ficar aqui por alguns dias. - Cedeu, recebendo uma comemoração e um abraço animado de Lilian - Você faz eu me meter em cada uma...

- Por isso você gosta tanto de mim. - Brincou, mas a morena assentiu com um sorriso.

- Eu estou precisando tomar banho. - Pri reclamou, caindo em si, provavelmente estava fedendo a hospital.

- Eu vou buscar uma roupa e uma toalha para você. - A menina apenas assentiu, Lili sumiu para o closet e Priscila começou a olhar em volta.

Seria legal ter aquele lugar como sua casa, afinal se fosse recomeçar, que recomeçasse tudo! Se precisa tomar uma decisão, já tem sua resposta.

Ainda estava triste, mas uma chama de esperança cresceu em seu peito. Era loucura? Claro que era! Mas andar com Lilian estava a deixando sem juízo.




COSMOS E CHAOS - Uma história sobre amor.Onde histórias criam vida. Descubra agora