CAPÍTULO 7

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Nathan entrou no apartamento assim que o sol começou a nascer. E eu estava jogado na poltrona, com a garrafa de tequila na mão, quase encostando no chão. Não virei para encarar Nathan, mas senti ele se aproximar até se recostar na parede ao lado da janela e me encarar.
— O botijão de gás explodiu no local — Nathan explicou — poucas mortes, mas o bar está interditado.
— Se ele fosse abrir hoje ficaria surpreso — Murmurei, soltando a garrafa no chão, sem quebrar, para finalmente o encarar — Viu quando os anjos foram embora?
— Vi. Eles salvaram muitos, mas preferi os evitar.
— Lembra da garota que viu no bar? A estranha que mencionou para mim? — Comentei. Refleti sobre aquilo a noite toda — Como ela era?
— Humm. Sim. Tinha uma bela bunda — Nathan sorriu de canto, revirando a lembrança da garota na mente — Usava jeans e um suéter vermelho.
— Suéter vermelho? — Ergui as sobrancelhas. Já imaginava, mas ainda assim fiquei surpreso — Ela é um anjo da guarda.
Me levantei, sentindo um formigamento nas pernas, dando as costas para Nathan para andar de um lado para o outro.
— Anjo da guarda? — Nathan questionou — Por que acha isso?
— Foi ela quem levou a loira para casa — Gesticulei — Encontrei com ela mais duas vezes depois disso e eu sentia a energia dela, mas não reconheci. E, ontem a noite, eu a vi voando para longe do incêndio.
Virei o rosto e encontrei o olhar cauteloso de Nathan sobre mim.
— Certo. E o que tem?
— O quê? — Franzi a testa — Não tem nada. Só achei que deveria saber.
— Você não mexeu com ela, mexeu?
— Não — Quase mordi a língua ao lembrar o quanto irritei e persegui a Bravinha.
— Você ainda espera que eles venham salvar você — Nathan murmurou
Trinquei os dentes e virei  o rosto  mais uma vez, tornando a andar de um lado para o outro, agitado e de punhos cerrados.
— Qual é, Kian? — Nathan deu dois passos na minha direção; eu podia sentir sua hesitação às minhas costas — Já disse que anjos caídos não voltam para Caelum. Você não pode ser salvo.
— Eu não estou esperando nada — Retruquei com impaciência, parando para o lançar um olhar cheio de fúria — estou avisando você porque ninguém arrancou suas asas, não é? Acha que seria inteligente encontrar com um deles?
— Eu sei, desculpe — Nathan passou as mãos nos cabelos — Acha que os arcanjos ainda estão atrás de mim? Sempre me perguntei porque nunca mandaram outro para terminar o serviço.
— Não sei, mas melhor não arriscar, Nathan. Ficar no caminho de um anjo é um motivo tão bom quanto qualquer outro.
— Principalmente quando estão em missões — Ele concordou — Certo. Vamos manter distância. Pelo menos, sabemos que estão aqui.
Me limitei a assentir, me ocupando em abrir os armários atrás de alguma bebida. Soltei um palavrão ao não encontrar nenhuma.
— Vou voar até uma cidade próxima desta vez — Nathan avisou — quer vir?
— Não. Vou reabastecer meu estoque de bebidas — Dispensei sem interesse, pegando um cartão de crédito de dentro da gaveta.
— Se tivesse recarregado suas energias, não precisaria disso para comprar bebidas — Nathan apontou para o cartão em minha mão e, com essa deixa, saiu do apartamento.
Suspirei, dessa vez de cansaço. Eu tinha a incrível habilidade de invadir mentes. Na verdade, podia criar situações tão reais que os fazia ver e sentir o que eu quisesse, e, diferente dos anjos divinos, envolvia tanto o físico quanto a mente, e nem precisava tocar em minhas vítimas, bastava querer. Já matara uma vez dessa forma, fiz a pessoa acreditar que estava morrendo queimada. Já fiz pessoas acreditarem que estavam se afogando quando na verdade estavam em pé diante de mim. Os fazia acreditar que estavam morrendo, então eles morriam.
Contudo, já não me alimentava da energia alheia há muito tempo, o que tornava quase impossível mexer com a cabeça das pessoas ou usar minhas habilidades de qualquer forma. No fundo, todo aquele poder me assustava; era muito fácil sucumbir quando se sabe que você é imbatível de alguma forma.
Quando eu caí, acreditei que tinha sido um erro. Berrei aos céus até ficar sem voz, contando minha inocência, explicando e rezando, mas nada aconteceu.
Ninguém veio e nem me escutou.
Nathan quem me consolou; aconselhou e ajudou a me adaptar, me explicou que se eu quisesse, podia usar minha aura para me alimentar da energia de outros seres. Nathan fazia isso durante o sexo ou apenas tocando em um outro alguém sultimente durante algum tempo. Funcionava também apenas ficando ao lado da pessoa ou do ser, mas levava mais tempo. Lembrava perfeitamente dele me explicando sobre essa necessidade.
— Pense que seu corpo é movido por uma bateria — ele explicou — Essa bateria é sua aura. Como uma bateria, sua aura precisa de energia para manter algo maior funcionando. No nosso caso, é o nosso corpo, nossas habilidades, nossa força. Diferente dos anjos de Caelum, não temos cargas caindo do céu. Temos que nos alimentar da energia alheia. Humanos são fontes inesgotáveis, algumas horas de sono ou momentos de prazer, e eles recarregam. Sem energia, Kian, você vai ficar mais fraco. Mais… vulnerável.
Eu cheguei a fazer isso por algum tempo, mas depois desisti. Não me importava em ficar sem minhas habilidades ou em demorar a me curar. Aliás, isso até tornava minha existência um pouco mais interessante. Sem energia, o álcool fazia efeito mais depressa, minhas feridas após uma briga demoravam mais tempo para cicatrizar, a fome vinha com mais frequência - e eu gostava de testar meu corpo ao limite de todas essas necessidades. 
Depois de tantos anos, gostava de acreditar que não desejava nada mais dos anjos de Caelum além de distância. Saber que o céu era injusto e até cruel me fazia querer estar em qualquer lugar, menos lá.
Ainda assim, bem no fundo, eu sabia que evitava usar meus dons com medo de me tornar cruel.
Depois de recolher minhas chaves, desci os andares de escadas e segui pelas ruas com as mãos nos bolsos, me fechando para as auras humanas à minha volta, entrando na primeira loja de bebidas que avistei.
Com tédio e lentamente,peguei garrafas de diferentes tipos de bebidas alcoólicas, e me dirigi ao caixa, observando o humano somar minhas compras sem nenhuma pressa. Respirei fundo e decidi encarar a rua através da vitrine, na tentativa de me manter calmo para não surrar o humano. Quando ergui o cartão para pagar, eu a vi passar na frente da loja de bebidas. Os cabelos acobreados e a pele pálida, concentrada no que estava à sua frente, sem nem olhar para os lados.
Sem dúvida era ela…
Senti um arrepio percorrer meu corpo e não pude ignorar.
Pedi que o caixa guardasse as bebidas enquanto resolvia um assunto e saí correndo assim que o humano murmurou um “claro” desanimado.
Segui na direção que ela fora, apressando o passo até a encontrar sentada no banco de uma praça. Ela usava um suéter de gola alta cor creme naquele dia. As mãos estavam na frente do corpo, unidas em oração e precisei erguer um pouco o pescoço para notar que ela estava de olhos fechados e pernas cruzadas. A anjo da guarda estava oculta para os olhos humanos.
Eu sabia que deveria manter distância. Como bem sabia, bastava uma alegação dela para os arcanjos mandarem um anjo vingador descer e arrancar minhas asas antes de me atirar em Grame, sem nem perguntar ao anjo olheiro se é verdade ou não. Contudo, eu tinha a impressão que ela não aprovava injustiça tanto quanto abominava coisas inapropriadas, o que me fazia crer que ela não levantaria falso testemunho contra mim. Não era sensato confiar naquela suposição, mas eu não conseguia parar de seguir ela.
Será que ela confessaria ser mesmo um anjo? Ou será que estou maluco?
Dei um passo a mais e ela abriu os olhos.
Ela sente, claro que sim.
Anjos Caídos exalam perigo mesmo sem terem feito nada de errado. Considerando que sexo, bebidas e assassinato é pecado para eles, então até que fazia sentindo.
A anjinha olhou para os lados até nossos olhares se cruzarem. Naquele momento, notei que ela tinha mais medo de mim do que eu tinha dela. Rapidamente, ela se levantou e caminhou para longe de mim.
Não vou desistir.
Atravessei a rua para segui-la e, mesmo que ela não virasse para olhar, eu sabia que tinha consciência da minha presença. Ela apressava o passo e eu também, ela dobrava em algum beco, e eu fazia o mesmo, segundos depois, sem a perder de vista. Porém, em uma outra curva, me atrasei ao desviar de um  grupo de humanos e, quando cheguei na rua, não a encontrei.
Droga.
Dei mais um passo e fui puxado para dentro de um beco, atirado contra a parede com um antebraço contra minha garganta. E lá estava ela. Mesmo mais baixa que eu, a Bravinha conseguiu me render, assumindo um olhar perigoso que nunca havia visto antes entre os anjos puros.
— Calma — Engasguei erguendo as mãos para o alto em rendição.
No fundo, senti aquela pontada de medo se acender dentro de mim, pressentindo que um arcanjo pudesse descer naquele momento e me matar.
— Por que está me seguindo, seu maluco? — ela afrouxou o aperto, mas não me soltou e nem desviou o olhar.
— Você até é bem brava para um anjo da guarda. — Me atrevi a sorrir com malícia.
A anjo do céu suavizou, se afastando de mim um pouco surpresa.
— Como é que…?
— Vi você ontem — Passei a mão na garganta enquanto recuperava a postura — No incêndio.
— Você quem fez aquilo! — ela acusou.
— O quê? — Olhei para ela, incrédulo — Claro que não! Eu estava em casa.
— Ah, estava? Fazendo o quê?
— Bebendo e transando, pra ser sincero — Coloquei as mãos no bolso — Você ia gostar.
Ela arregalou os olhos e silvou, virando de costas enquanto murmurava coisas incompreensíveis. Embora eu tivesse mentido sobre ter transado, gostei de ver ela ficar toda nervosa com a menção do ato pecaminoso.
— Você é um anjo da guarda — Repeti, dessa vez mais tranquilo.
— E você é um anjo caído — ela me encarou, irritada.
Perdi meu sorriso e precisei respirar fundo para me manter tranquilo. É claro que ela sabe.
— Me conte uma novidade. 
— Eu não sabia — ela se apressou em dizer — no início.
— E como descobriu?
— Vi você na floresta com aquele seu amigo. Nathan. — ela franziu a testa.
— Me bisbilhotando? —Consegui manter a voz suave, embora o fato dela saber sobre Nathan não me agradava nenhum pouco.
— Não tenho culpa que vocês sejam sujos por natureza.
— Escuta aqui, Bravinha — Dei um passo em direção a ela, olhando-a nos olhos de uma forma ameaçadora que não havia planejado —, não estamos fazendo nada de errado aqui e nem procurando confusão com os da sua raça, então, não tente nos acusar injustamente para os…
— Não tenho interesse em vocês, caídos — Ela me interrompeu, ainda mais irritada — Sou um anjo protetor e estou aqui por conta própria.
Não desviei os olhos dela, embora tivesse ficado surpreso.
— Você escolhe quem salvar.
— Quem merece ser salvo — Ela deu mais um passo para trás, quase encostando na parede oposta do beco
— Acha que quero ser salvo por você? — Não evitei rir com deboche — prefiro arder em Grame.
— Não se preocupe, esse será seu destino sem que precise da minha ajuda.
Ela tentou ir embora, mas me coloquei no caminho dela de novo para cuspir as palavras que subiram à garganta.
—Só porque caímos não quer dizer que somos cruéis. Conheço anjos e arcanjos mais sujos que muitos anjos caídos por aí!
Ela me olhou por alguns segundos, absorvendo o que havia sido dito. Não me importei com aquela troca de olhares. Estava tão perdido nos olhos azuis-prata dela que até esqueci o que eu havia dito. Por fim, ela piscou e soltou o ar que estava prendendo antes de sussurrar com doçura.
— Deixe-me ir, por favor.
Fiquei surpreso com o pedido. Tão surpreso que senti algo mudar no modo como o meu coração batia dentro do peito; os olhos dela ainda estavam mim, prateados e brilhantes, e, só notei o quão perto estávamos quando senti o cheiro dela subir e me atingir como um soco no rosto - pera e baunilha. Ela cheirava a pera e baunilha

Engoli em seco, e fui tirado de meus devaneios ao notar os olhos arregalados dela.

— Você tem medo de mim.
—Não, só acho que algumas espécies não devem se misturar— aquilo foi pior que um chute.
Com aquilo, abri caminho, permitindo que ela fosse embora em passos largos. Precisei ficar ali por alguns segundos até ser tomado pela irritação e a vontade crescente de beber até cair.

Um Doce Sacrilégio | Corações Infernais | Livro umOnde histórias criam vida. Descubra agora