Dara
Minha pele estava pegando fogo.
Eu sei que isso deveria ser impossível - e como eu já havia checado que meu corpo não estava em chamas, então, claro que minha pele não estava pegando fogo de fato. Porém, estava, sim.
Eu sentia minhas bochechas ardendo e um calafrio percorrer lugares estranhos de mim. Kian se fechou no banheiro e eu consegui ouvir tudo: o farfalhar da roupa dele caindo no chão, o som da cortina do box do banheiro e, por fim, a água falhando ao esbarrar no corpo dele.
Normalmente, eu nem ligaria para isso. Eu nem sequer teria percebido a ausência dele. Mas ele tinha que sussurrar aquilo, não é?
E quando digo que tiro minhas roupas, é para você imaginar.
Encolhi os dedos dos pés dentro do sapato e fechei as pernas com mais força. Faz quase 10 minutos que ele havia dito aquilo e eu ainda podia ouvir com clareza.
Respirei fundo e tentei, mais uma vez, prosseguir com a leitura. A água do banheiro foi desligada, a cortina do box se moveu e Kian puxou algo felpudo.
Por Caelum, Dara, pare com isso! De que cor é o céu? De que cor é o céu? O céu é...
A porta do banheiro se abriu, coisa que me assustou e, num impulso, virei o rosto para olhar.
Oh, céus! O céu é bronzeado, largo e molhado.
Kian surgiu com apenas uma toalha enrolada na cintura e um sorriso presunçoso nos lábios.
- Esqueci de pegar roupas limpas, desculpe - ele atravessou o apartamento sem nem segurar a toalha.
Eu não tinha certeza se ela estava firme o bastante e sabia que podia cair a qualquer momento...eu nem deveria olhar para o peito largo e cheio de músculos dele que, apesar de bem definidos, pareciam ser macios e...
Desvie o olhar! Pare de olhar AGORA!
Minha boca secou e meus olhos acompanharam Kian escolher uma muda de roupa e voltar para o banheiro.
Fiquei imóvel. Aturdida. Engoli em seco mais uma vez e relaxei as pernas que eu havia apertado com muito mais força. Logo, Kian saiu do banheiro; o cheiro dele misturado ao sabonete era inebriante, mas me obriguei a abaixar o olhar e focar no arquivo diante de mim.
- Estou pronto - ele parou atrás de mim e eu tremi levemente - Você está bem? Parece tensa, Bravinha.
- Estou bem - Recolhi o arquivo e me levantei, tomando distância de Kian e de seu cheiro antes de olhar ele nos olhos.
Kian estava vestido todo de preto agora; os cabelos úmidos ele havia jogado para trás e a barba estava aparada, apenas o suficiente para espetar. Mudei meu pé de apoio e soltei o ar que estava prendendo.
- Melhor irmos de uma vez.
- Os arcanjos não vão se importar se você viajar assim? Ainda mais comigo?
- Achei que não se importava com os arcanjos - passei por ele, pronta para sair do apartamento.
- Ei...- Kian segurou meu braço e me puxou levemente, obrigando que eu o olhasse- Eu me importo com você. Quero ter certeza que não vai ter problemas.
- Não se preocupe comigo. Sou livre para ir onde quiser. - Kian afrouxou o aperto e eu pude me afastar - Eles ficam de olho em vocês, não em mim.
- E como sabem quando pecam?
- Eles sentem. - Indiquei ele com ambas as mãos - Veja você, por exemplo. Parece um farol pecaminoso.
Kian revirou os olhos e eu dei uma risada baixa. O fogo em minhas veias havia baixado e eu já me sentia capaz de ficar perto dele em segurança.
- Vai ser uma longa viagem sem sexo e, talvez, perigosa - prossegui e Kian me olhou de sobrancelhas erguidas - quer mesmo ir?
- Aposto que tem garotas em Roths- ele deu um sorriso de raposa.
Meu sorriso se foi e eu bufei. É claro que ele já havia pensado naquilo.
- Vamos logo - Segui caminho para fora do apartamento - precisamos passar no meu apartamento e falar com Nathan.
- Estou indo. Estou indo - Kian trancou o apartamento e veio atrás de mim - vamos de carro para chamar menos a atenção.
- Certo - respirei fundo e apertei o arquivo junto a mim.
Chegou a hora de ir atrás de respostas.***
KianPeguei meu carro sem problemas, e, depois de pegarmos o livro no apartamento de Dara, passamos na casa de Nathan, que morava em uma casa no meio do bosque, em um estrada de chão quase impossível de se achar se não soubesse exatamente onde ficava. Nathan já nos esperava em frente da casa e, descemos apenas para entregar a ele o arquivo e o livro.
- Vou vasculhar esse livro e fazer umas pesquisas- Nathan me entregou um celular e eu assenti- Ligo pra vocês se eu achar algo.
- Obrigada, Nathan- Dara sorriu com doçura. Um belo sorriso.
Fui atingido pelo desconforto de Nathan, mas, por baixo daquilo havia algo mais. Desejo. Olhei para ele e pude ver certo fascínio no modo como ele olhava para Dara.
Ah, não. Não. Não.
-Vamos logo. - Trinquei os dentes e ele abaixou o olhar.
- Até mais, Nathan - Dara entrou no carro, ocupando o banco carona na frente.
- Se cuidem - Nathan assentiu e me olhou.
Eu acenei com a cabeça e fui para trás do volante, sem responder. Não tinha motivo para ficar com raiva dele. É claro que não. Porém, não consegui evitar e, para não ser rude, era preferível ficar em silêncio.
Nathan acenou para Dara, e eu pisei fundo no acelerador, saindo dali antes que ela pudesse acenar de volta.***
Me mantive em silêncio mesmo depois que perdemos a casa de Nathan de vista e seguimos para fora da cidadela.
Eu sentia dentro de mim algo se revirando; havia na minha cabeça uma vozinha que insistia em dar significados e analisar a troca de olhares entre Dara e Nathan, causando certa impaciência e uma vontade quase incontrolável de perguntar e questionar Dara.
Era incômodo. Um misto de raiva, tristeza e ansiedade que deixava um sabor amargo na boca. Sem me dar conta eu estava tamborilando os dedos no volante e trincando os dentes com tanta força que meu maxilar doía. E eu não conseguia parar ou deixar pra lá.
- Humm. Chegaremos amanhã em Roths? - Dara quebrou o silêncio estranho e desconfortável.
- Sim. - destravei meu maxilar.
- Ótimo - ela murmurou
Meus dedos batiam com mais força no volante. Pigarreei para limpar a garganta e perguntei de uma vez:
- O que você achou de Nathan?
Senti Dara me olhar, mas me obriguei a manter os olhos na estrada.
- Humm. Não sei - o tom de voz dela era confuso - Pareceu legal. Um bom amigo, eu diria. Mas você deve saber melhor do que eu. E ele parece gostar de você.
- E de você também - resmunguei
- Isso é bom, né? Acho que ele é confiável - Dara deu uma risada baixa, nada além de um sussurro.
Certo. Ela está nervosa. Está desconfortável. Preciso parar com isso.
- Como você está se sentindo? - Mudei o assunto depressa, mas permaneci atento à estrada - Em relação a tudo isso.
-É muita coisa para absorver- Ela suspirou e eu senti seu olhar em mim - E sobre o que aconteceu com você...no céu... eu...
-Não quero falar sobre isso, Dara. - Meu coração veio na garganta e eu apertei o volante.
-Mas, precisamos. - Ela insistiu com a voz doce - Você não estava errado, você estava fazendo o certo. Eles deviam ter te levado para o céu de novo, Kian.
-Mas, não levaram, e, sabe, não quero mais. Não quero voltar para Caelum sabendo que lá eles nos condenam injustamente.
-Eu sei.
Chequei o retrovisor. Nada atrás. Então voltei a olhar para frente. O maxilar ainda trincado.
- Está com raiva de mim? - Dara indagou em meia voz.
Olhei para ela, rapidamente. Os olhos azuis prateados estavam carregados de medo e mágoa.
-Não, Dara. - Suspirei pesadamente.
- É o que parece. Eu sabia que você não devia ter vindo.
- Não é isso- Me remexi no assento- Eu só estou tentando regular meus pensamentos.
- Sobre o que?Sobre Nathan olhando para você de um jeito que eu, provavelmente, devo olhar. Sentindo uma ponta do que está me consumindo há dias e você olhando para ele com esses olhos que me dominam desde os primeiro momento que os vi!
- O que vai fazer quando descobrir as coisas? - Engoli aquele bolo na garganta.
-Eu não pensei nisso ainda. - Foi a vez dela se remexer no assento.
Não era novidade que ela omitia coisas de mim, porém, passar tanto tempo com Dara havia me deixado mais em sintonia com suas emoções, e, desde que ela descobriu o que fizeram com sua vida humana, um sentimento de raiva e ressentimento a acompanhava. Cada vez que uma coisa nova surgia ou quando era mencionado sobre a situação, esse sentimento reluzia nela; vibrava. E era impossível não captar.
-Dara...-Sussurrei e senti o olhar dela vir para mim - Eu sinto muito pelo que houve.
-Eu também.
-Vamos descobrir se quem fez isso está vivo. Vamos pôr um fim nisso.
- Obrigada. - a voz dela falhou um pouco - Sei que pedi para você não vir, mas gostei muito que veio.
Fiquei arrepiado. Meu coração bateu mais forte e senti minha aura se manifestar, mas a contive para que Dara não sentisse nada vindo de mim.
- Sabe que não vai me fazer chorar, né? - Consegui sorrir para ela.
-Ah, claro, machão. Essa era sem dúvida a minha intenção.
Dara revirou os olhos, daquele jeito rebelde e nada pomposo. Um jeito que eu sabia que era só dela, e que nenhum outro anjo possuía.
- Gosto de você assim... -Dei uma risada curta - É até excitante.
- Kian!
- Eu não falei sexo.
Dara engasgou.
- Falou agora!
- Eu sei que você gosta.
- Não! - Ela jogou a cabeça para trás e riu.
- Mas deveria.
- Obsceno. - Dara ainda sorria.
- Santinha- Retruquei.
Eu olhei para ela, ela para mim. Uma troca de olhares breve em meio a sorrisos descontraídos, e, após uns longos instantes, eu liguei o som do rádio em uma música alta e animada.
O bolo no estômago se foi, eliminado pelo sorriso luminoso de Dara que dizia que eu não precisava pensar no que iria acontecer depois. Ela estava ali ainda. Era o bastante por enquanto.
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Um Doce Sacrilégio | Corações Infernais | Livro um
Fantasy"É sempre assim? O pecado é sempre tão tentador?" Eufórica por finalmente ser um anjo protetor, Dara Lorenz se prepara para descer à Telluris e cuidar da proteção dos humanos. É nesse primeiro contato que ela percebe como o mundo pode ser violento...