42 - Inferno

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Que noite foi essa?!
Foi minha primeira pergunta assim que abri os olhos e encontrei Sandra na minha cama.
O sol entrava pela janela e a cortina balançava com o vento, talvez fosse meu primeiro dia de paz, porque foi a primeira vez, depois de muito tempo, que senti essa sensação.

- Playboy... Cadê você? Vai começar o velório. - o Nextel apitou e eu voltei do transe.

Sandra também acordou com o barulho e me olhou como se aquela noite tivesse sido um erro.

- Bom dia? - sussurrei em um sorriso.

- A gente vai se atrasar.

Ela levantou da cama as pressas, enrolada no lençol, e foi pro banheiro com suas roupas emboladas em mãos.
Depois que a porta bateu e Sandra sumiu da minha vista, senti um certo desconforto em meu peito mas não deixei que aquilo me abalasse.
Apenas continuei organizando o quarto pra pode ir ao velório de Carla.

- É dona Carla... Perdi a aposta. - ri meio desajeitado e pensativo. - Você se foi primeiro que eu... E esse não foi o combinado. - sussurrei enquanto encarava nossa fotos juntos, na cabeceira.

- Com certeza ela está em um lugar melhor. - Sandra tinha saído do banheiro.

- Que mania de falar que quem morreu tá numa boa. - ergui a sobrancelha esperando uma resposta. - Foda-se, vou tomar banho.

Entrei pro meu banho e quando sai, Sandra não estava mais lá.
Travei o maxilar com raiva ao ler seu bilhete.

"Sabemos que não posso ir, preciso resolver as coisas com a minha família."

Ela era irônica, né? Como se a família fosse super importante pra ela...
Como se alguém fosse importante pra ela.

- Tô indo. - falei com pressa enquanto desligava o celular na cara do CG.

Estacionei a moto do meu pai em cima da calçada.
CG tinha escolhido um lindo lugar pra velar Carla.
Ainda encostado na moto, tirei um chiclete do bolso e coloquei na boca, mastigue por alguns segundos sem pressa. Eu iria precisar de toda calma e paciência do mundo pra entrar naquele lugar.
Pude sentir meus ombros pesarem de tensão.

- Vem. - sua voz me tirou do mundo da Lua. - Eu entro com você.

Natacha esticou a mão pra mim e eu só pude olhar no seu olho como forma de gratidão.
Segurei em suas mãos e ela apoiou a cabeça em meu ombro, andou comigo devagar, no meu ritmo, e toda vez que eu precisava parar pra assimilar, ela me acompanhava.
Pude ver de longe meus amigos, familiares e tudo o que tinha direito mas cada vez que eu chegava mais perto, me sentia mais só.
Apertava tanto a mão dela, que pude sentir seu olhar de preocupação algumas vezes.

- Meus sentimentos. - Rato me abraçou, enquanto eu permaneci estático. - Nós vai passar por isso. - balançou a cabeça positivamente.

- Tô contigo, Playboy! - CG me abraçou do mesmo jeito. - Tu não tá sozinho não, irmão... Sou tua família.

Eu precisava entrar lá e ver ela no caixão, acho que só assim iria acreditar em toda essa história.

- A Bruna não veio? - Rato negou com a cabeça. - Tá...

Soltei a mão de Natacha devagar, tentando me convencer que não iria precisar dela. Direcionei o corpo até o caixão, me aproximei muito e pude notar todos dando um certo espaço.
A saliva rasgava minha garganta, meu peito parecia que ia explodir de tão acelerado e as mãos molhadas, me davam impressão que eu estava derretendo. Tudo girava ao meu redor, só que em câmera lenta...
Encostei a mão no seu caixão, ainda não consegui olhar lá dentro, precisei de alguns segundos pra tomar coragem.

Lá estava ela... A pele clara, um cabelo bem arrumado, as unhas sem esmaltes e as flores que ela gostava em volta de sua cabeça.
Quando me dei conta, estava chorando. O véu de seu rosto ficava cada vez mais molhado com os pingos silenciosos do meu choro.
Fiz um longo carinho em seu rosto pálido e gelado, até perceber que eu não chorava de tristeza, eu chorava de remorso.
Remorso por tantas vezes que eu pude fazer isso e não fiz.
A verdade, é que eu não conseguia salvar ninguém que passava na minha vida...

- Você não tá sozinho. - ouvi seu sussurro e senti sua mão quente no meu braço.

Natacha podia ser muito filha da puta, podia ser mesmo minha versão feminina mas ela sabia onde que doía.
Só ela sabia!
O funeral acabou. Ver aquele tanto de terra por cima dela me partia o coração mas tudo bem, talvez ela estivesse mesmo em um lugar melhor...
Eu estava acabado, por dentro e por fora, cada pedaço de mim estava tão esmagado quanto grãos de café e pela primeira vez na minha, a sensação foi de derrota.

- Hoje você quer que eu fique? - os braços estavam cruzados. - Eu sei que ela veio aqui.

- Quem, Natacha?! - fiz cara de paisagem e encostei as costas na parede.

- Porra, Playboy... Que você não vale nada não é segredo, só seja sincero, né?

- Ah... A delegada... - consenti com a cabeça.

- Eu sei que não sou ela... Mas também sou uma boa companhia.

Acendi outro cigarro enquanto o sol sumia devagar no céu.

- Não precisa se desmecer assim também, em. - traguei. - Você tem suas qualidades.

- Não adianta nada se você não gosta de mim igual eu curto você.

Na boa? Eu tava tão enrolado com meus sentimentos... Acho que eu nunca gostei de alguém a ponto de pensar em casa e ter filhos. Construir uma família era sinônimo de fraqueza pra mim, eu não quero ser fraco.

- A gente já tentou, lembra? - eu ri de sacarmo.

- Como se você tivesse sossegado seu cu. - revirou os olhos. - Nenhum dos dois é santo.

- Mas relacionamento é pra ser fiel, num é? E eu não sei se eu consigo. Tem que tá no nirvana.

Pra quem não sabe, o nirvana é um portal pra paz integral, e tipo, nada tira aquela paz.
Então, acho que eu tenho que gostar MUITO da pessoa pra isso não acontecer.

- A gente só podia começar do jeito certo, pra variar um pouco.

- Seguinte, Natacha... Quer transar? Eu tô aqui. Não quer? Beleza... Provavelmente alguém quer o que eu quero e alguém quer o que você quer.

- Você é muito escroto, sabia? - ela cerrou os olhos na minha direção.

- E seu namorado? O Ruan, Luan... Sei lá. Já acabou?

- Ele é meu ex faz tempo... Você que deixou ele ser atual por uns dias. - agora ela me fez rir.

- Quer entrar?

O céu nunca foi meu lugar... O que dá pra fazer dos meus relacionamentos se eu já faço da minha vida um inferno?

EU VIM DA RUA - MC Kevin (Kevin Bueno)Onde histórias criam vida. Descubra agora