Existem muitos trabalhos importantes em torno da criação, mas também existem aqueles que exercem uma pequenina função, que muda tudo. Há uma fala entre os humanos que sempre passa em minha cabeça nesses momentos, "Deus escreve certo por linhas tortas" não sei onde descobriram isso, mas poucas vezes acertaram de forma tão precisa.
Enevoado, é como estava o tempo naquele dia, frio, sem vida, sem propósito. Para uma jovem do subúrbio de Santiago, aquele não seria um dia normal. Aquele seria o dia de sua morte.
A neve ainda caia, mas o grosso já passara, não foi com um sorriso que ela calçou as botas naquela fria manhã e caminhou até o velho café do bairro onde passaria as próximas horas servindo a todos um falso sorriso para esconder seus demônios. Para si mesma a garota dizia estar bem, já não doía e ela não se importava, ainda que a cada instante a ideia de saber o que ele estava fazendo ou com quem estaria passasse por sua cabeça. Tudo correu bem naquela manhã, ela até o esquecera, por um momento sorriu e brincou com seus velhos colegas de trabalho como nos tempos antigos, mas isso não durou. Seu coração congelou quando ele entrou no café de mãos dadas com outra garota, mais jovem, mais bela. Parada ela os observou entrar, por um instante ele a olhou nos olhos sem se importar com sua companhia, aquele foi um dos raros momentos em que o coração bate mais forte e o tempo para. Ambos hipnotizados. Uma pena que o tempo realmente não pare, ele segue sem se importar com qualquer um. Após o olhar constrangido ele desviou o rosto como se não se importasse e seguiu com a jovem garota para uma mesa ao canto. Lá começaram as caricias e os beijos enquanto o seu passado o observava atrás de um balcão.
Seu coração agora em pedaços já não podia suportar, por um instante achou que fosse cair, mas uma de suas colegas já estava a postos a segurando, seus colegas sabiam tudo de sua vida, eles foram sua família no velho orfanato e sabiam o quanto aquela cena lhe doía. Sem saber como ela chegou até a cozinha e se sentou no chão longe dos clientes, uma mão parecia conduzi-la, mas estava tudo embaçado e ela não conseguia respirar. De repente sentiu o aperto a envolvendo e o mundo foi se acalmando, a seu lado sua melhor amiga a envolvia em um demorado abraço, ela já podia respirar.
_ Fica aqui, toma uma água e relaxa, eu vou lá fora chutar aquele idiota, nem que eu tenha que arrastá-lo pelos cabelos.
_ Não. - Sua voz ainda não se recuperara por completo de seu ataque de ansiedade e ela ainda estava cansada. - Não, ele não pode fazer isso.
_ Põe pra fora. - Tão cedo disse, a envolveu em um abraço, seus olhos doíam de verdade ao ver sua amiga sofrendo, seu coração doía ao vê-la naquele estado enquanto queria tanto aquele amor. - Deixa doer, como nunca doeu, mas promete aprender com essa dor, para que nunca mais você volte a senti-la. Você é incrível, não deixa um idiota te fazer pensar o contrário.
_ Não dá. Eu não consigo, ta doendo muito, essa agonia.
_ Você vai conseguir sim, eu sei do que é capaz. Agora fica aqui quietinha, eu vou lá tirar ele daqui.
Enquanto ficava só, a jovem começou a ponderar toda a sua vida, em um segundo recordou toda a infância, lares provisórios, os estupros na infância e por fim o orfanato. Uma mancha em todo o seu passado, parecia não existir luz em nenhum dos cantos de sua alma que olhava, tudo fora cinza, sempre cinza. Naquele momento ela viu um único brilho, um brilho especialmente criado para si. A luz rescindia perfeitamente na lâmina da faca que refletia um brilho prateado em seus olhos, seu olhar ficou preso inicialmente e uma tentadora ideia nasceu em sua cabeça.
Longe dali, em outro plano, onde tudo brilha e se parece plasma, onde a energia assume a real face, um anjo lutava mentalmente para influenciar a mulher de forma positiva e lhe lembrar das belezas da vida, dos amores que adquirimos, das derrotas que se tornam lição, as tardes na praia com a família que o mundo lhe deu, todos os sorrisos, todos os dias bons. Ele tentou, mas não estava só, uma mancha negra perseguia a mulher, a induzia e agora ela estava mais forte, ela foi convidada a entrar e a permanecer, pequenas e grandes permissões, todas dadas ao longo da vida, naquele momento, aquela mancha era tudo o que sua cabeça escutava. E ela lhe dizia para acabar com toda aquela dor, descansar enfim e ter paz, tudo e nada, tudo desapareceria.
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PRINCIPIUM
General FictionAs bombas caiam de forma sincronizada. Para aqueles distantes das grandes cidades, foi uma bela visão, uma daquelas que sempre nos arranca o fôlego ao lembrar. Para aqueles que ardiam em chamas, o Inferno se tornava real. Os gritos vinham de todos...