ALFA E ÓMEGA

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Dias atuais...


...senhor é convosco, bendito sois vós entre as mulheres...

Como de costume, embora secreto, o então Papa Inocêncio VII, passava as contas de seu rosário em oração na ânsia de afastar os pesadelos que o assombravam todas as noites. A lua lá fora já atingira o seu ápice e começava a cair para o breve amanhecer. Embora as noites tivessem o costume de assombrá-lo, sabia em seu amago que aquela era uma boa hora, quando a maioria das almas estavam em suas camas mergulhados no véu dos sonhos, em paz longe de todo o mal, ainda que ele soubesse da brevidade desses momentos e do quão raros eles logo seriam.

Por um instante se permitiu um olhar para o altar a frente e sentiu a tristeza que dele vinha junto a angustia que sempre o acompanhara como uma velha amiga. Só quando voltou sua atenção ao rosário em suas mãos que percebeu a presença na entrada da Capela. Por muito tempo esperava aquele momento e embora já sentisse aquela energia próxima por alguns momentos daquela vida, nunca tinham se reencontrado de fato.

Um aramaico antigo percorreu as paredes conforme o velho se aproximava do Papa em suas orações. Embora com um sotaque arrastado e quase arranhando, talvez pelo longo tempo que o velho não utilizava aquela lingua, as palavras soaram claras como a água para o Papa que se permitiu deixar o rosário de lado e contemplar seu velho companheiro.

_ Em minha última visita a esta Capela, estrelas riscavam o teto. Era lindo, mas devo admitir que as mudanças a deixaram ainda mais bela.

_ Tive a graça de vê-la sendo construída, reconstruída e alterada, não presente é claro, mas ainda assim. Ela realmente ficou bela, em especial este altar, não consigo me conter ao olhá-lo.

_ É fascinante a forma com que eles enxergam o mundo, todo o simbolismo que carregam, as expressões e formas que se inspiram. Conheci o pintor, você adoraria debater com ele.

Voltando a se sentar diante do altar, o Papa convidou o velho com um gesto para se postar a seu lado e voltou sua atenção ao teto e suas figuras.

_ Não deixamos de ser humanos, podemos compreender o caminho, a verdade, mas essa parte sempre nos acompanhará como os acompanha.

Pensativo, o velho se aproximou em silêncio e após uma reverência ao altar se sentou contra o piso, seu olhar também viajou para o teto, mas após um breve silêncio retornou para o Papa. 

_ Tudo fica mais difícil depois que se contempla a Luz, nada é mais como antes.

_ Somos seres humanos, temos a graça de estarmos sempre em mutação, transformamos tudo o que tocamos. Nossa obra ainda não está acabada, nem todos os mistérios revelados. Ainda a muito para sonharmos, nos inspirarmos e transformar.

Se erguendo, o Papa caminhou até o velho sentado e estendeu a mão que logo puxou a do velho abrindo espaço para um abraço que esperou milênios. Saindo do aperto, o velho voltou a contemplar o Papa e enquanto se permitia um sorriso disse:

_ Tantas histórias para lhe contar, tanto o que vi e conheci. Como aguardei por este abraço.

_ Logo teremos tempo para essas histórias, também tenho muito a mostrá-lo. Mas ainda nos resta aguardar.  Agora que enfim se apresentou, terá de partir, é chegado o momento.

_ Partir, sabe que não estão prontos.

_ De fato não estão, mas precisamos ter fé ainda assim. No fim, sempre serão eles, temos apenas que guiá-los e cumprir os seus papeis.

_Claro. Eu sei como encontrá-lo.

_ Imaginei, também estive o buscando, mas nem mesmo os anjos podem senti-lo. Todas as tentativas se mostraram vãs. 

_ Anjos jamais o encontrariam, não pela energia, só um humano poderia, e embora eu tenha alguns milênios de idade, como você mesmo disse, ainda sou um.

_ Ótimo, espero que esses milênios o ajudem a lidar com um jovem.

_ Ele não é um jovem qualquer..., mas sim, vão ser úteis.

_ Pois bem, então parta agora mesmo, localize-o e o ensine tudo o que lhe é devido, faça isso enquanto ainda temos tempo.

_ Assim farei.

Se afastando, o velho voltou a reverenciar o altar e em silêncio caminhou até a saída enquanto o Papa voltava até seu lugar junto ao rosário, ao sentir uma brisa soube que já estava só na Capela.

A angustia o tinha deixado e ele soube que ela não mais voltaria como os pesadelos. Por eras ele aguardava aquele momento e agora que ele enfim chegara teve medo. Com o profundo silêncio que caiu sobre o ambiente, apertou seu rosário contra o peito e voltou o olhar para o afresco Il Giudizio Universale (O Juízo Final) de Michelangelo sobre o altar da Capela Sistina.  Um último pensamento passou em sua cabeça ao pensar em seu velho companheiro.

_ Que Deus o ajude Iohanan.  

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