Capítulo XXXI • Almoço

27 4 6
                                    

————— ※ ·❈· ※ —————

~ 28 de Janeiro ~
~ Domingo ~

Se hoje fosse um dia normal, na vida normal de uma garota normal e que reside em uma cidade normal, hoje estaria na praia.

Mergulharia naquelas águas azuladas, sentiria a areia entre os dedos dos pés e degustaria quantas bebidas praianas quisesse. Infelizmente, eu não sou essa garota normal. Não mais.

Me transformei em uma adolescente com milhares de problemas; pessoais, familiares, internos e externos. Problemas que fogem de minha sutil consciência e envolvem quase que o mundo todo. Nos momentos que penso assim, tenho vontade de retroceder no meu próprio tempo, recomeçar e desviar de todos os obstáculos que acabei ultrapassando com coragem, mas que me fizeram acabar aqui.

Justamente, aqui. Trancafiada em um esconderijo, repleto de heróis que prezam pela minha segurança, e pela segurança de meu dom desgraçado.

Mas, o que mais dói não é ter ciência disso. O que mais dói é saber que não sou só eu nessa. Meus pais estão nessa. Minha priminha de apenas um ano está nessa. Amizades que prezo estão nessa. Quem eu estou aprendendo a amar está nessa. Todos que eu quero o bem estão nessa, e não aparentam desejarem sair. O que mais me frusta. Se pudesse, abandonaria todos e seguiria essa trajetória sozinha.

Já há muitas família destruídas no mundo por diversos erros; escolhas mal feitas, substâncias malditas, tristeza e decepção contínua. E eu não quero que a minha família entre para essa lista, e que seja ainda mais destruída por minha privilegiada causa.

[ 10:36 A.M. ]
| No quartinho de Zaya |

Liah: hoje era o dia de ir à praia, sabia Zaya? ― a retiro do berço e a alinho em meus braços. ― se tudo isso não tivesse acontecido, continuaríamos indo a praia. Continuaríamos seguindo nossas vidas pacatas, que eram mais felizes do que a que temos agora, entretanto.

Quando avistou seus brinquedos ao chão, Zaya movimentou-se com irritação e eu soube a hora de deixá-la livre de meu aconchego. A coloquei entre seus objetos infantis e me sentei ao seu lado, mantendo aquele livro antigo e com dedicatória de minha mãe à mim sobre minha coxa.

Liah: pena que não podemos voltar, não é? ― afasto suas mechas lisas de seu rostinho, vendo-a com um sorriso adorável enquanto batia um bloco de montar em outro. ― ah, tia Helena e tio Caio. Como eu queria vê-los aqui. Com a Zaya. ― murmuro, abrindo aquele meu livro e folheando algumas páginas.

Desde que recebi esse livro, eu venho tentando entender seus ensinamentos e a praticá-los com minha individualidade. Sinto que devo entendê-la e não ignorá-la. Ela é uma parte de mim, uma parte de minha alma, e sempre lembra-me do meu breve passado com meus "verdadeiros" pais. A sensação é boa, até deixar de ser. As recordações que tenho, em sua minoria, me fazem sorrir. Mas, em sua maioria, me fazem sentir como um nada.

Liah: "feitiço de afastamento". ― leio o título da quinta página, que possuía instruções explícitas do tal feitiço.

Graças as gravuras que o verso da página tinha, compreendi que se me empenhasse em aprender aquele feitiço, conseguiria afastar qualquer coisa de mim. Qualquer coisa mesmo. E nem era ilusão minha, estava escrito ali. Bastava algumas palavras pronunciadas ou mentalizadas e movimentos corretos com as mãos, que teria a habilidade de ver longe de qualquer coisa que pudesse causar-me mal ou desconforto.

Pelo o que entendi de tudo o que li, já havia feito aquilo. Com o meu pai, naquele dia. Foi horrível e eu nunca repetirei essa tragédia, mas... por um lado, valeu a pena. Agora, eu sei que controlar e manipular essa individualidade não é tão difícil quanto me pareceu de primeiro momento.

De Repente, Você. (O Encontro)Onde histórias criam vida. Descubra agora