Extra IV

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As Cartas de Sophie (1)

— Ao menos dê um sorriso. Para mim, você está com cara de quem comeu e não gostou.

Suspirei, separando os lábios no melhor sorriso que podia dar. Algumas pétalas de cerejeira interrompiam o momento de preparação para a foto, ora pousando em meu blazer azul, ora grudando-se em uma das minhas bochechas. Animado, papai pedia para que eu ficasse exatamente embaixo da árvore, segundo ele, aquilo era tradição nas fotos de adolescentes japoneses, futuros ingressantes do ensino médio. Mas meu pai estava errado. Eu não me considerava um deles.

Me mudei para o Japão muito nova. Mamãe estava no oitavo mês de gestação da minha irmã, Yuina, e mesmo assim ainda teve forças para atravessar para o outro lado do mundo. Nos Estados Unidos, minha terra natal, deixei amigos, esperanças, e uma vida que eu pudesse me encaixar. Logo nos primeiros dias no novo país, soube que teria mais complicações a enfrentar, do que apenas uma diferença entre as línguas.

Não foi tão difícil me acostumar ao idioma pois a mamãe sempre fez questão que eu não esquecesse a minha descendência japonesa. No entanto, o que antes era apenas uma brincadeira linguística, virou obrigação e motivo de piadas no fundamental a cada vez que a minha pronúncia não era correta. Mas, se fosse apenas as risadas pelo uso incorreto do idioma, eu poderia suportar.

Minhas diferenças em relação ao meu novo país não se restringiam a língua. No meu primeiro dia de aula, quando fui convidada pela professora a escrever o meu nome no quadro e me apresentar aos futuros colegas, vi nos olhares desconfiados, a estranheza em relação a minha cor. Alguns, livres de qualquer decência, me perguntavam o motivo de ter nascido “diferente.” E assim que sabiam da minha nacionalidade, resolviam se afastar.

Estrangeira. Aquele foi o apelido que ganhei em menos de um mês naquela escola. As crianças apontavam para mim, para o meu cabelo, para o meu tom de pele. Me faziam comer dentro de um banheiro apertado, cansada demais para ser motivo de comentários fora daquela sala em que eu era obrigada a ficar. Tiravam a minha vontade de participar de torneios, ainda que fosse obrigatório. Me jogavam para escanteio nos festivais culturais. Me deixavam com saudades da minha verdadeira casa.

Acredite, Sophie. As coisas vão ser melhores agora. E se não forem.. Sei que será corajosa o bastante para se impor.

Afirmei positivamente, caminhando ao lado do meu pai. Às vezes, quando eu achava que estava sozinha, ele flagrava as minhas lágrimas silenciosas. E sempre era paciente o bastante para esperar que elas cessassem, apenas para limpá-las depois. Depositando beijos no meu cabelo, dizia que as coisas iam melhorar. E que eu sempre o teria para me proteger.

As coisas não melhoraram no ginasial, mas se tornaram mais suportáveis. Àquela altura eu já tinha feito duas amigas, Keiko e Kaori. Elas eram gêmeas, e no começo, tinha muita dificuldade para diferenciá-las. No entanto, com o tempo, pude conhecer as duas com a palma da minha mão.
Elas eram lindas, e secretamente eu desejava ser como elas. Populares, descoladas. Mas não importava o quanto eu tentasse, nunca consegui. Nas brincadeiras, poucos queriam ficar ao meu lado. No festival cultural, quase ninguém me convidava para um passeio. No dia de São Valentim, não recebia bombons. Keiko e Kaori sempre diziam que não entendiam o motivo, já que eu era linda. Mas eu sabia.

E estava decidida a mudar aquilo. Não seria mais uma sombra das gêmeas, nem “aquela estrangeira que anda com as populares.” Queria ser reconhecida pelo meu nome, pelos meus feitos, por mim.
Meu primeiro passo consistia em mudar o visual. Deixei o cabelo crescer e troquei minhas roupas de sempre por modelos mais descolados. Passei a usar batom e delineador, procurei por agências que me lançassem no mundo das top models. No fim do ginasial, eu já estava pronta para começar o ensino médio, e felizmente, na mesma escola das minhas melhores amigas. As coisas iam mudar.

Eu não disse que as coisas iam mudar? Olhe para essa pétala. Uma vez, li em um site que é um sinal de sorte quando uma dessas pousa em sua mão.

Sorri, apertando a pétala entre os dedos. Papai era muito otimista. Lembro das horas que ele perdia, enfiado em livros e revistas que apresentavam os costumes japoneses. Será que mesmo com aquele esforço, ele conseguiu se encaixar? Será que seus clientes não o viam como o “advogado estrangeiro?

Estar no ensino médio era assustador. Pensar que havia sonhos, planos, e toda uma série de experiências que me aguardavam era reconfortante, mas ao mesmo tempo, trazia o fantasma da rejeição na mente. O que eu faria se não me aceitassem? Como eu deveria agir para que gostassem de mim? Será que Taisha e Micelly, amigas que a mudança havia deixado para trás, estavam tão nervosas como eu estava agora?

Imaginava Taisha e Micelly em um colégio estadunidense, ambas sorridentes pois estavam em seu domínio. Já eu, envolta por rostos que pareciam me julgar apenas por existir, me sentia naufragada em alto mar.

As Cartas de Sophie (2)


Nada havia mudado. Eu ainda estava como um melão no meio de morangos, me agarrando à companhia das gêmeas, abaixando a cabeça para comentários depreciativos, quando decidi entrar naquele jogo de poder.
Yamada Kentin era o sonho de consumo de qualquer caloura, talvez até das veteranas. Para mim, um coringa em uma batalha praticamente perdida. Amigo das garotas, pouco a pouco o melhor jogador do time de basquete da Hachi se aproximava de mim e se sentia instigado a me conhecer. Parece horrível dizer que o maior motivo para ter aceitado o pedido de namoro de Kentin tenha sido a popularidade que aquela relação me traria, mas estaria mentindo se dissesse que não era por isso. Apesar de gostar da minha companhia, eu sabia internamente que Kentin havia me escolhido porque viu a possibilidade de fazer em mim a sua “musa”. Apesar dos pesares, éramos felizes juntos.

Namorada do mais novo queridinho da Hachi, minha relação com o restante do colégio mudava drasticamente. De “garota estrangeira” passei a ser reconhecida pelo meu nome, convidada para festas, incluída e comentada. Todos queriam saber o que eu estava fazendo, tentavam me agradar, discutiam sobre a minha vida, contavam histórias que me faziam ser temida, mas respeitada. Eu estava vivendo a vida que eu sempre quis desde que cheguei ao Japão, longe dos olhares que me julgavam e dos comentários que me desprezavam.

— Kentin! Eu te disse que isso era apenas entre a gente. Se os pais dele virem isso?

— Isso não vai dar em nada. E além do mais, se estiverem ocupados com outra pessoa, ninguém vai ter tempo para falar de você. Não é mesmo, meu amor?

Assenti, sentindo um gosto amargo de culpa na ponta da língua. Dias atrás, havia fotografado um garoto da nossa sala, Aono Sousuke, revelando as tatuagens que ele escondia debaixo do uniforme escolar. Aquilo havia sido uma brincadeira entre o nosso grupo de amigos, mas Kentin enviou a foto para os colegas do basquete, e desses colegas, a escola inteira ficou sabendo da foto. Diferente do que o meu namorado esperava, o ocorrido terminou bem mal para o Aono. Assim que eu soube, me senti muito culpada.

Me sentia uma pessoa horrível por estar sacrificando outra pessoa em prol do meu bem estar no colégio. Mais ainda por saber o que era ter o colégio inteiro apontando, comentando, rindo. Algumas vezes, tentei me desculpar com aquele garoto por tudo o que tinha feito, mas sempre travei. Será que eu era uma pessoa ruim? Será que era grata por Kentin ter feito aquilo?

Com o tempo, sendo mimada pela vida de estrelato que Kentin me proporcionava, esqueci de qualquer pudor que me impedisse de ser cruel com as pessoas à minha volta. Quanto mais inacessível, mais admirada. Eu não me sentia sozinha. Tinha Kentin, as garotas, e milhares de garotas nas redes enxergando-me como um ícone. Mas, faltando poucos meses para o último ano no colégio, sinto um vazio que pode ser equiparado à solidão. Mesmo com todos os meus desejos ao alcance das minhas mãos, sentia falta de momentos divertidos com a turma. Fora dos torneios e eventos, não éramos tão unidos, e mesmo nessas épocas, qualquer um podia notar o clima forçado que nos juntava. Não existia diversão, apenas a preocupação com os prêmios que ganharíamos e é claro, o quanto falariam bem de mim por liderar a turma vitoriosa.

Se eu tivesse que listar algum arrependimento, acho que seria esse. Acho que, quase dois anos depois, não posso voltar atrás do que fiz. Se eu tivesse uma oportunidade, certamente agiria diferente. Não deixaria que aquele garoto carregasse um fardo que deixei em suas costas. Talvez até seríamos amigos. Não só ele, mas todos aqueles que fiz mal de alguma forma. Me permitiria mais. Encontraria outra forma de alcançar os meus objetivos. Mas agora.. É tarde demais.

Minha Nova Vida Sendo a EstrangeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora