54. Pequena

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POV FREEN

Eu não posso dizer que sabia exatamente o que se passava na cabeça de Becky. Eu a conhecia muito bem, mais que muitos, mas ela havia se tornado ainda mais fechada depois dos anos. A única coisa que eu sabia de verdade, era reconhecer os traços de uma mente que precisa de conselhos e ajuda, por isso sabia que a terapia era o passo necessário para que ela voltasse a se encontrar. Nunca forçaria isso a ela, pois deveria ser uma decisão somente sua, mas no que eu pudesse servir de apoio e conselho, eu o faria. O conto de Khuan Yin tinha sido uma referência para mim, assim como as inúmeras cartas que havia escrito a Becky durante os primeiros anos, e achei que era uma boa maneira de começar a tratar daquele assunto.

Naquela noite, passamos mais alguns minutos uma no braço da outra, enquanto aproveitávamos a ligação que nos mantinha em equilíbrio. O céu estrelado de Bangkok sendo testemunha da gente virando a página da nossa história. O que há muito tempo havia nos separado, agora nos uniria ainda mais, eu me certificaria disso.

Algumas semanas se passaram e Becky parecia um pouco melhor, menos fora da sua cabeça, levemente mais relaxada; mas eu sabia que ela ainda não tinha procurado nenhuma ajuda profissional. Parte de mim queria muito questionar isso, mas outra parte não queria forçar nada. Eu buscava dar a ela seu próprio tempo, mas sempre observando os seus sutis sinais. A cuidaria de perto e interferiria se achasse que era o momento.

Nessa tarde de muita chuva em Bangkok, acabamos ficando presas em casa. Era um sábado, e o plano inicial era irmos para o clube da última vez, mas a ideia foi interrompida pelo clima irregular. Becky conversava com Li, ambas sentadas no chão da sala. Ela tentava distrair minha filha, que havia ficado muito chateada com a mudança de planos.

"Eu queria muito nadar na piscina," Li resmungou mais uma vez, enquanto pintava sem muita vontade, o livro de colorir a sua frente.

"Nós iremos outro dia, pequena, infelizmente a chuva nos pegou de surpresa," Becky respondeu, pacientemente, o que eu já havia falado algumas vezes.

Ela tinha me pedido para tentar distrair Li, exatamente porque nada do que eu havia tentado tinha dado certo, logo ela disse pra eu ir tomar um chá que seria sua vez de consolar a menina. Não preciso dizer que assimque terminei de preparar a bebida quente, me sentei em um canto confortável do sofá para assistir de perto aquela relação que fazia o meu peito aquecer. Eu tentava não ser intensa, mas na intimidade dos meus devaneios, eu podia confessar que aquilo era tudo o que eu sempre sonhei. Um sábado chuvoso qualquer, com as suas duas pessoas favoritas do mundo, vivendo os pequenos problemas do cotidiano. 

"Podemos ir amanhã?" minha filha questionou, formando em seu rosto uma expressão tão fofa e pidona que eu previ os olhos em pânico de Becky em minha direção, antes mesmo de ela virar seu rosto para me encarar.

Eu ri, negando com a cabeça, antes de deixar minha xícara, agora vazia, sobre o porta copos na mesa ao lado do sofá, e me levantando para ir na direção da dupla, que ocupavam as cabeceiras da mesa de centro da minha sala. A expressão assustada de Becky relaxou em seu rosto quando eu me aproximei o suficiente para tocar com carinho o topo da cabeça da minha filha.

"Talvez outra semana, bebê. Domingo é muito agitado no clube," falei, dando uma piscadela para Becky, que me devolveu um sorriso. Ela já havia me confessado algumas vezes como mexia com ela todo o meu jeito maternal, e sim, às vezes eu usava disso para provocá-la.

Li levantou a cabeça para me encarar com a sua expressão pidona e eu apenas ri mais uma vez, não em gozação, apenas achando fofo todo o drama que a pequena estava fazendo. Deslizei minha mão pelas suas bochechas e deixei um toque leve na ponta do seu nariz.

"Eu vou perguntar ao seu pai se ele pode levar você semana que vem, mas não é uma promessa, ok? Ele pode ter outros planos," falei.

"Mas eu queria ir com você e Becky também," ela voltou a resmungar. "O papai é mais divertido na piscina, mas eu gosto quando somos nós três e agora gosto de ler com a Becky, mamãe," a pequena continuou.

Confesso que a sua fala me trouxe sentimentos conflitantes. Me fazia feliz que Li tivesse adquirido um carinho genuíno por Becky, mas me doía saber que ela ainda estava passando pela fase de transição do fim do meu relacionamento com Rune. Na maior parte do tempo, ela parecia compreender completamente, afinal nos separamos quando ela era muito pequena e ela cresceu com nós dois separados. Mas no entanto, desde que começara a estudar e conviver com outras crianças, algumas dúvidas e necessidades estavam surgindo em sua cabeça. E ela havia começado a querer mais e mais a nossa presença unificada em sua vida.

Pensando em como eu havia sido auxiliada em respondê-la, me sentei ao seu lado no chão e peguei suas mãozinhas nas minhas.

"Bebê, você sabe que eu e o seu pai lhe amamos muito, não é?", perguntei, mantendo meu tom gentil e meus olhos nos seus.

"Sim, e Li também ama muito vocês," ela respondeu desse jeitinho, na terceira pessoa, fazendo um sorriso bobo aparecer no meu rosto e Becky soltar uma risada baixo. Meus olhos desviaram brevemente para a mulher que estava atrás de Li e trocamos olhares cúmplices que diziam claramente: fofa.

"Eu sei que sim, meu bem," falei voltando a encará-la. "Mas lembra que a gente conversou que a nossa família pode ser um pouco diferente?" ela concordou. "Então lembre que às vezes vamos estar todos juntos, às vezes você vai estar só com seu pai e às vezes só comigo, mas que isso não muda em nada, em absolutamente nada, que somos um a família um do outro. E que isso nunca vai mudar, ok?"

"É como a Doutora Noi falou, não é, mamãe? Que todas as famílias são diferentes e a nossa só é especial do nosso jeito," ela respondeu, fazendo eu me emocionar levemente e sentir o maior orgulho da menina esperta que ela estava se tornando.

"Exatamente isso, meu bebê," respondi, não me contendo em tomar seu rostinho pequeno em minhas mãos e trazê-lo próximo para depositar vários beijos orgulhosos nele.

Minha filha riu com o carinho, mas também se desviou do gesto, dizendo que já era o suficiente. Fazendo eu e Becky rirmos juntas e voltarmos a nos encarar em cumplicidade.

Li voltou a sua pintura e eu estava quase me levantando do chão para retomar meu lugar no sofá, quando a pequena falou:

"Eu gosto da Doutora Noi, ela faz as coisas terem sentido," ela disse, da maneira genuína de uma criança.

"Quem é Doutora Noi, pequena?" Becky perguntou, apoiando seu cotovelo na mesa e seu rosto em sua mão, para encarar Li de maneira gentil.

"Ela é minha psicola," minha filha respondeu, simplesmente.

"Psicóloga, bebê," a corrigi, divertidamente.

"Isso," Li confirmou minhas palavras.

Meus olhos foram até Becky quando ela não continuou a conversa e eu pude ver que algo havia mudado em sua expressão. Seus olhos pareciam desfocados, como se sua mente estivesse longe dali. Me perguntando o que tinha acontecido, estendi minha mão por trás do corpo de Li, e toquei delicadamente o braço de Becky, que pareceu despertar do seu transe e levou seus olhos do meu toque até os meu olhar curioso.

"Eu acho que estou pronta para ter a minha própria psicola também, pequena," foi a sua resposta ao meu questionamento silencioso. E eu acho que nunca sorri tão grande na vida.


Notas da autora:

Boa tarde, bbs! Como estamos?

Eu estava com saudades da interação dessas três e acho que vocês também. Me veio essa ideia no meio do capítulo e eu confesso que gostei muito de como ficou. Espero que vocês sintam o mesmo.

Não corrigi, pois preguiça kkkkkkkkk sorry.

Até o próximo!

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