Evelin - Parte III

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 Quando Evelin olhou lá fora viu por completo a gigante árvore e Benício chegando tão impressionado quanto ela. Foi nesse momento que a menina que já estava acostumada a sentir medo o tempo inteiro, foi tomada pela coragem. Ela pegou sua manta, a única coisa que lhe tinha algum valor, e se pôs em cima do galho mais próximo de sua janela.

A árvore parecia uma grande cerejeira com galhos altos e fortes e parecia ter crescido especialmente para servir de descida para a menina. Os galhos a aguentavam sem dificuldade e o tronco tinha uma curva onde ela podia se sentar e olhar para Benício mais de perto. Porém ela ainda estava a alguns metros do chão e não tinha mais onde se apoiar para descer.

Aquela era a parte mais difícil, onde ela teria que pular. Mas Benício já estava preparado para pegá-la em seus braços e depois de um olhar e um aceno com a cabeça ela se jogou. Benício não conseguiu segurar a menina, mas ao menos amorteceu a sua queda e, caídos no chão, os dois gargalharam juntos de um jeito que nunca tinham feito antes.

Benício levantou e segurou a mão de Evelin para que ela se levantasse também. Os dois ficaram parados na frente um do outro se olhando com timidez, até que Evelin viu a faca de caça que Benício levava na cintura e a tirou da bainha, em seguida, a usou para cortar os cabelos e se livrar daquele peso.

Quando os fios de ouro que estavam emaranhados pelos galhos da árvore gigante perderam o seu brilho dourado para se tornar apenas fios de cabelos comuns, Evelin se sentiu envergonhada como se um segredo obscuro tivesse sido revelado, mas essa vergonha passou quando Benício beijou gentilmente seus lábios.

- O que é isso, posso ver? - ele perguntou se referindo a manta que a menina segurava na outra mão e ela entregou para que ele visse e ele, depois de ler o que estava escrito, mostrou de volta para ela. - Evelin, você é Evelin - Benício disse apontando para o nome na manta e depois para ela.

Eles haviam perdido a noção do tempo e não perceberam que o sol estava prestes a se pôr, e quando Evelin foi pensar nisso, já era tarde demais. Ela sentiu algo passando rapidamente por cima de sua cabeça e em seguida viu o abutre avançando diretamente contra o rosto de Benício, que caiu para trás.

O abutre havia prendido as garras em Benício e o golpeou no rosto e nas mãos que o rapaz usava para tentar se defender. Evelin segurou firmemente a faca e cravou com força nas costas do bicho, que soltou um grito e parou o ataque, caindo morto.

Mesmo com Evelin tendo agido rápido, Benício ainda tinha ferimentos graves nos olhos, além dos mais leves pelas mãos, mas ele estava vivo e conseguiu levantar e andar com a ajuda da menina, que rasgou a barra de seu vestido para amarrar nos olhos dele na tentativa de conter o sangramento. Eles se foram, esquecendo e deixando para trás as lembranças que tinham de seus pais. A faca cravada no abutre e a manta que Evelin deixou cair quando o atacou.

Era um longo caminho até que eles pudessem chegar até algum lugar onde tivessem pessoas para ajudá-los e Evelin precisava das instruções de Benício para seguir o caminho para a vila, mas ele estava por um fio de perder a consciência ou até pior e precisava que ela fizesse o papel de seus olhos e o guiasse.

Juntos eles andaram por horas, tendo que atravessar com muito cuidado o terreno difícil enquanto o céu ficava mais escuro e os animais noturnos começavam a emitir sons no pântano. O último desafio foi atravessar um rio, mas logo do outro lado estava a vila onde Benício morava.

Era uma vila às margens do rio onde não moravam muitas pessoas, e estava deserta, pois a essa hora todos já estavam dentro de suas casas descansando. Benício indicou o caminho para a casa de amigos de confiança dele e de seu falecido pai, que ele conhecia desde que havia nascido. Era um casal, Josias e Raquel, e foi Josias quem atendeu a porta. Mas a primeira coisa que ele fez ao ver o que tinha diante dele foi chamar a esposa.

A visão de Benício em ambos os olhos jamais voltaria, mas ele tinha sorte em estar vivo, e tanto Raquel quanto Josias estavam cuidando bem de todos os seus ferimentos e também de Evelin, que pela primeira vez estava se alimentando de algo diferente do mesmo fruto de sempre.

É claro que os cabelos de ouro da menina não passaram despercebidos, e Benício explicou tudo para os amigos, por mais inacreditável que fosse. Ele falou sobre a torre e sobre como antes Evelin tinha metros e metros de cabelo, falou sobre o abutre que havia lhe atacado e como os fios só eram feitos de ouro quando na cabeça dela e por isso que provavelmente ela estava sendo feita prisioneira.

Todos concordavam que era arriscado demais exibir os cabelos de Evelin e que aquilo poderia atrair a atenção de outros abutres no futuro, por isso ela passou a usar um turbante, e Raquel também, em solidariedade.

Quando Benício se recuperou, ele voltou para a própria casa, que era bem ao lado, e levou Evelin com ele. Era uma casa boa, graças ao trabalho árduo que o pai de Benício pôs na construção da torre, ele pôde ter uma vida confortável, mesmo que sem luxos, e com acesso à educação a partir de tutores que o ensinaram a ler e escrever.

Juntos eles cultivaram seus alimentos e criaram animais, e Evelin também ficou muito amiga de Josias e Raquel, mas conforme foi aprendendo a socializar, também fez muitas outras amizades, ficando tão querida e conhecida por sua beleza e gentileza que em certo ponto as outras mulheres da vila também aderiram ao turbante, inspiradas por ela.

Depois de casados foram anos tentando ter um filho, até que quando Evelin tinha vinte e seis e Benício vinte e oito, eles tiveram o primeiro filho: Hugo, que se tornou um rapaz bonito, alto e forte Ele tinha os cabelos castanhos como o do pai, cacheados e volumosos, na altura dos ombros.

Quando Evelin e Benício já tinham mais de quarenta anos e Hugo tinha quinze, o casal foi surpreendido com mais um filho, que batizaram de Bruno. Este também tinha os cabelos castanhos como os do pai e do irmão, porém mais escuros, e na baixa estatura e o corpo esguio ele tinha vindo como a mãe. Bruno não era atlético como o irmão mais velho, mas se mostrou precoce na leitura e tinha uma mente ágil e criativa.

A vida da família não era perfeita, como nenhuma é, mas aos olhos dos outros era ideal. Ter um marido que a entendia como ninguém e filhos lindos e promissores fazia com que Evelin se sentisse a mulher mais afortunada do mundo, mesmo quando cortava seus cabelos e os via perdendo o valor, um ritual que ela fazia todo mês.

Um pouco antes de completar sessenta anos Benício foi acometido por uma doença e após passar dois dias delirando em febre ele se foi. Já Evelin, partiu três anos depois, mas diferente dele, ela ficou por meses debilitada antes de seu sofrimento ter fim. Em seu leito de morte ela abandonou o turbante e não saiu de casa, permitindo visitas somente dos amigos Josias e Raquel, que a essa altura também já tinham os próprios filhos. Ela parou de cortar o cabelo, que agora crescia muito mais rápido ainda, alcançando em três meses o tamanho que antes teria alcançado em muitos anos.

Em seu último dia de vida, Evelin estava apenas com os filhos em casa e pediu pela tesoura, e quando seu primogênito se ofereceu para fazer o corte, ela se recusou e fez por conta própria, mas dessa vez foi diferente. Os fios de ouro caíram no chão ainda dourados, e os que estavam na cabeça de Evelin se tornaram fios grisalhos como os de uma senhora qualquer. Ela pegou os cabelos nas mãos e olhou para eles antes de adormecer pela última vez, grata por ter envelhecido.

Hugo e Bruno a vida inteira se perguntaram se aquilo havia sido proposital. Será que Evelin tinha algum controle sobre sua situação e poderia ter feito a escolha de transformar o que havia sido uma maldição para ela em uma bênção para seus filhos? Eles nunca tiveram a resposta para essa pergunta.

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