O reino passava por uma crise religiosa jamais vista. O Círculo, que já a algum tempo estava se desintegrando, teve o seu fim permanentemente e os conflitos entre os epifratistas e os revisionistas ficavam cada vez mais violentos no continente. O fanatismo da população e aumento do poder das instituições religiosas por fim quebrou a redoma de proteção que apenas o reino de Querates possuía quando se tratava de religião.
Mas apesar disso, a inesperada união entre Querates e a elite de Yeotang colocou a família real em seu momento mais próspero e exuberante, e a princesa Gisele acabou se tornando o rosto dessa maravilhosa união. Ela carregava os mais belos traços dos pais e se tornou um ícone para as meninas tanto da corte quanto do povo. Se a princesa era vista usando o cabelo de um jeito, no dia seguinte todas as meninas do reino copiavam, e nada se comparava aos vestidos que ela usava.
A avó de Gisele, Peoja, escolheu a dedo uma artesã para confeccionar tudo que a princesa vestisse, dos pés à cabeça. O nome dela era Daeyong, mas Gisele a chamava carinhosamente de Daidai. Ela era uma senhora muito generosa e tinha um imenso carinho principalmente pela princesa, mas também por toda a família.
Certa vez, quando tinha quinze anos, a princesa decidiu ir a uma missa de uma das civitas revisionistas da capital. A essa altura já havia inúmeras ramificações dessa vertente religiosa, e embora Querates ainda não contasse com uma única fé oficial, cada vez mais a família real tendia ao revisionismo, diferente da maior parte da população.
O epifratismo havia surgido numa vila pequena em um território que fazia parte da Valástia, na época a tradição era que somente o mais alto membro do clero tinha permissão para ler o livro que continha as palavras da fé, sendo dele a responsabilidade de orientar os demais.
Mas quando a vila foi invadida por um povo hostil, o livro foi perdido e poucos sobreviveram. Dentre os sobreviventes, aqueles de fé mais ferrenha reescreveram de memória o livro sagrado, cujo eles não sabiam nem o nome e passaram a chamar simplesmente de O Livro. Muito foi perdido, mas muito também foi recuperado, e eles espalharam sua palavra a ponto do epifratismo se tornar a fé mais popular do mundo depois de quase mil anos.
Era daí que vinham as diferenças entre os tradicionais e os revisionistas. Os tradicionais mantinham o hábito de apenas o membro de cargo mais alto de cada civita poder ler as palavras, enquanto que os revisionistas reconheciam que foi a partilha de conhecimento que salvou a religião e portanto todos deveriam ter acesso ao Livro. Eles também partiam do princípio de que o material original estava há muito perdido, e tudo o que eles liam estava sujeito à interpretação dos homens que reescreveram a obra, portanto era direito de todos o livre pensar, desde que fossem boas as intenções.
- Se alguém lhe perguntar, diga que não sabia aonde eu estava indo - Gisele pediu para Dayeong, enquanto a senhora baixinha e robusta lhe escovava os cabelos.
- E qual o motivo dessa visita? Nunca que a mocinha se interessou nesses assuntos.
- Não sei, Daidai, me sinto perdida. Sinto falta dela - respondeu se referindo a Cordélia.
- Você realmente gostava dela, não é mesmo? - Daidai disse pondo a escova de lado e olhando nos olhos da princesa através do espelho. Conhecia aquela menina como ninguém e podia ver sua alma através de seu olhar. Não havia segredo entre as duas mesmo que as palavras não fossem ditas.
- Sim, gostava - depois de alguns segundos, se virou para Daidai e respondeu.
- Esse tipo de coisa não se esquece nunca, criança - disse acariciando as bochechas da princesa -, mas você é jovem, tem muita vida pela frente. Mesmo que a dor da morte fique, sua vida irá crescer grandiosa ao redor e fazer parecer que essa dor diminuiu - dito isso, a moça terminou de arrumar o cabelo de Gisele e ela ficou pronta.
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Era dos Contos
FantasíaEra dos Contos é uma releitura de contos clássicos dos irmãos Grimm e poemas épicos, todos passados em um universo de fantasia, mas aqui a história não acaba no felizes para sempre e nós acompanhamos os personagens durante todas as suas vidas, então...