Gisele - Parte II

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Já fazia oito anos de guerra civil em Querates. Epifratistas e revisionistas destruíam as civitas um do outro, havia ataques nas ruas, sequestros, saques e a pilha de corpos aumentava a cada dia. Gisele se culpava, pois o estopim desse conflito tinha sido logo após ela ser vista em uma civita revisionista, mas a verdade era que os fanáticos já buscavam há tempos uma oportunidade para declarar a guerra.

Desde a anulação do casamento de Bruno e Navina, um século atrás, havia quem visse a linhagem real como bastarda. Na época foi feito muito esforço para que o povo mudasse de opinião e por muitas décadas não se falava mais nisso, porém uma série de erros reais e imaginários deixava os epifratistas descontentes.

Eles desaprovam a falta de uma união epifratista por meio de casamento. A falecida princesa Rebeca descartou a possibilidade de um casamento desses com a sua travessura com o então príncipe Carlo, que agora era rei. Ao invés disso ela se casou com um estrangeiro com uma fé selvagem e estranha. Já Ágata se casou com um revisionista que pouco escondia sua fé e tinha um lugar de privilégio como conselheiro real. Também não era segredo que Aelin, dentre suas muitas leituras, consumia obras de autores revisionistas, e chegou até a conhecer pessoalmente alguns deles, mesmo que não fosse propriamente adepta da religião.

Nem mesmo a conversão e a devoção da princesa Ana tinham efeito positivo na popularidade da família real entre os fanáticos, já que como a moça tinha seus deveres a cumprir, pouco era vista publicamente com seus parentes, o que levantava a suspeita de que ela era excluída por sua fé. Uma grande mentira, pois ela seguia sendo uma pessoa muito querida para seus irmãos, sobrinhos e avó.

Por todos esses motivos que Virgínia, que a propósito já ocupava o cargo de rainha por mais tempo do que qualquer pessoa na história, tinha de novo a sua legitimidade questionada.

A rainha tentava resolver o conflito de maneira diplomática e imparcial, como era o costume do reino desde muito antes dela assumir o trono, mas assinar decretos e proteger o direito livre de expressão religiosa não fazia nada para apaziguar os ânimos.

Álvaro foi promovido a senhor da guerra e ficou responsável por comandar os exércitos e conter os motins, dando uso inúmeras vezes ao seu arco lendário, enquanto Túlio buscava soluções diplomáticas, negociando com a nobreza e trocando cartas incessantemente com outros reinos, visto que o envolvimento de outros reis e rainhas era eminente.

A princesa passou a aparecer pouco em público e se fechou também para seus amigos e parentes, cada notícia ruim da guerra a afetava profundamente e ela temia ser atacada outra vez. Os epifratistas a odiavam ainda mais e sua fama de garota inocente se foi, sendo agora os rumores sobre a princesa mais sórdidos. Aos vinte e cinco sem nunca ter se casado, Gisele já era considerada uma solteirona mal amada.

Ela passou a ter o hábito de escolher uma dama de companhia como favorita para lhe acompanhar em todas as atividades, mas estas não costumavam durar mais do que meio ano antes de serem trocadas e nunca mais vistas. Certa vez Bruno viu sua irmã ao longe com uma dessas damas no jardim, sentadas em um banco de pedra uma de frente para a outra e com um livro ao lado de Gisele. As duas pareciam estar conversando, mas na verdade só Gisele falava, segurando nas mãos da jovem com os cabelos castanhos e o rosto arredondado. Logo que a princesa terminou de falar a outra se retirou com uma tentativa falha de disfarçar que estava aos prantos.

- Dessa vez não tive tempo nem de aprender o nome dela - Bruno comentou enquanto se aproximava e se sentava ao lado de Gisele.

- Charlotte - ela respondeu com um ar de tédio. - Por que se importa?

- Não é com ela que me importo e sim com você, minha irmã. Você não é mais a mesma e me dói que não consiga manter suas amigas.

- Você também está sempre com uma garota diferente e ninguém parece se preocupar com isso, não é nada de mais - Gisele retrucou irritada.

- É diferente. Eu tenho meus amigos e essas são apenas namoradas - Gisele pensou em retrucar novamente, mas hesitou, não queria prolongar a conversa.

- Está certo, então o que me sugere?

- Bem... - ele pensou. - O aniversário da bisa se aproxima. Ela relutou bastante, mas não pode negar que uma rainha chegar aos cem anos não é algo que se vê todos os dias e haverá um baile em comemoração. Me prometa que vai se divertir, dançar e rir com gente nova.

- Eu prometo - disse ela da boca para fora. - Agora se me der licença quero ler este livro - pegou o objeto ao seu lado e abriu antes que Bruno pudesse se despedir. Se tratava de um livro de poesias que Gisele pediu que Charlotte devolvesse antes de dispensá-la. Antes de devolver, a pobre garota que não sabia o que estava por vir havia destacado os trechos que a fizeram se lembrar da princesa.

A ocasião de um baile deu a oportunidade de Daeyong, depois de muito tempo, trabalhar em um belo vestido para Gisele. Até mesmo a querida Daidai andava afastada da princesa naqueles tempos e o novo projeto a deixou muito animada.

O trabalho da artesã era demorado, mas valia a pena, como era de se esperar. Os artesões de Yeotang eram conhecidos por isso, o país era sinônimo de paciência e bom trabalho e seus costumes e tradições refletiam esses valores. Dayeong era a melhor de todas e seu talento foi reconhecido quando ela trabalhou no espetacular vestido de noiva de Aelin, se destacando dentre os demais que também colocaram as mãos no projeto.

O baile seria de máscaras. "Todos já sabem que sou uma velha, não precisam ver as rugas", havia dito a rainha. E Gisele usaria uma máscara cor de bronze cobrindo os olhos e o nariz simulando um bico de pássaro, o lado esquerdo da máscara sendo ornamentado com uma pluma azul.

O vestido, portanto era azul com detalhes de renda verde e pássaros pequeninos bordados em bronze na barra, cor de bronze também eram os sapatos com o salto alto. Só aquilo, sem contar com as jóias que a princesa usaria, valia o próprio peso dela em ouro.

Gisele amou o resultado, e a data do baile se aproximava, faltando não muito mais de uma semana. Ela pensava no que seu irmão havia lhe dito sobre aproveitar e se divertir, e pouco a pouco a ideia lhe apetecia, e a companhia de Daidai e o magnífico vestido contribuíram para a animação.

Porém a princesa de repente foi surpreendida com uma decepção tamanha que a fez desabar. Ela, que já havia arranjado outra dama para lhe fazer companhia, estava sentada no mesmo lugar em que esteve com Charlotte naquele dia, porém agora a jovem da vez se chamava Lucrécia. Um guarda chegou para lhe falar e ela dispensou Lucrécia para ficar a sós com ele.

- O que há? Assim me mata de preocupação - Gisele perguntou afoita, não era muito paciente.

- A sua criada, Daion... Da...

- O nome dela é Daeyong! O que tem ela?

- Ela está sendo presa agora, achei que Vossa Alteza gostaria de saber.

- O quê?! Me leve até ela.

A senhora, que era quase tão baixa quanto uma criança, estava com um vestido florido e os cabelos presos, seus olhinhos gentis encaravam o chão e suas mãos algemadas estavam para frente. Ela se encontrava em sua sala de trabalho sob a custódia de um outro guarda.

- Que absurdo é esse? - Gisele indagou furiosa. Tinha certeza de que aquilo não passava de um mal entendido, confiava em Daidai com sua vida e sabia que aquela mulher não era capaz de fazer mal a uma mosca. Nem por um momento lhe ocorreu acreditar que ela poderia ser culpada seja lá do que fosse. - Solte ela imediatamente!

- Vossa Alteza, se me permite explicar. Ela foi flagrada pegando material de costura escondido. Esses tecidos valem mais do que ouro e ela estava levando consigo - Gisele precisou de alguns segundos para assimilar a informação. Nunca se importou de checar minuciosamente o destino dos materiais trazidos de Yeotang, mas se aquilo fosse verdade o prejuízo era imensurável.

- Oh, Daidai... me diga que não é verdade.

- É verdade, criança. Mas eu posso explicar - confessou ela.

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