Com a informação do local onde o pai havia deixado o filho, havia por onde começar as buscas. No primeiro dia, Hugo foi acompanhado por alguns companheiros e eles não tiveram sucesso em encontrar nada, mas colocaram armadilhas por toda a parte.
No dia seguinte, Hugo decidiu ir sozinho, pois havia ficado impaciente com outras pessoas o atrasando. Depois de algumas horas procurando por qualquer pista que fosse, ele encontrou um rastro de sangue que parecia vir de uma das armadilhas. O sangue ainda estava fresco, então quem quer que tenha pisado ali não devia estar longe.
E ali estava ele, ferido e mancando. A aparência dele batia perfeitamente com as descrições, era um homem alto e peludo que andava nu sobre as duas pernas, mas possuía os chifres e os dentes de um animal. Ao ver Hugo ele rugiu enquanto os pêlos de seu braço se arrepiaram.
Por mais que o plano fosse matar a criatura, Hugo não conseguiu. Os outros haviam visto mais bicho do que gente naquele ser, mas ele se lembrou da própria mãe, que também tinha vivido reclusa por boa parte da vida e não tinha culpa alguma por isso. Largando o arco e as flechas no chão, Hugo se aproximou lentamente para olhar o ferimento mais de perto.
O rosnado do homem foi ficando mais brando conforme ela percebia a amistosidade do rei, além disso, ele além de ferido estava fraco e magro, parecendo que não comia a dias.
Hugo improvisou algo para parar o sangramento e jogou a criatura sobre os ombros, que deu um rosnado com o susto, mas nada fez para tentar se soltar. Ao retornar, Hugo estava com ombros extremamente doloridos e as pernas exaustas, se ajoelhando no pátio e colocando o corpo que carregava no chão.
Os guardas, que já tinham o visto de longe, se aproximaram intrigados e prestaram socorro ao rei, mas apenas olharam curiosos para o outro homem, sem saber o que fazer.
- Levem ele pra dentro e chamem o pontalto! - Hugo ordenou.
Os guardas colocaram a criatura em uma cama à espera do pontalto. Outro dever do cargo era cuidar fisicamente e espiritualmente do rei e de quem quer que ele ordenasse e o pontalto da vez era um velho epifratista de setenta e seis anos que se chamava Saulo. Ao examinar o paciente ele ficou chocado com o que via e mais chocado ainda que Hugo queria ele vivo.
- Nós devíamos dar um fim a essa abominação - ele disse depois de, com a ajuda do próprio Hugo e de um dos guardas, forçar a criatura a beber um chá que a fizesse dormir e fazer um curativo no ferimento em sua perna.
- Obrigado pelos seus serviços Saulo, irei considerar o seu conselho - Hugo mentiu.
Logo depois que Saulo foi embora, Hugo mandou que chamasse Mael, um dos membros do Círculo que representava o draoismo, uma religião que cultuava espíritos da natureza e rezava em clareiras e bosques, sendo assim muito mais útil em tratar daquela questão.
Mael era outro senhor passado dos setenta anos, mas examinou o paciente com muito mais cuidado e atenção do que Saulo.
- Parece que o pontalto já cuidou bem dele. Perdão, mas não entendo porque me quer aqui, Vossa Majestade.
- Saulo não entende o que ele é e quer que eu o mate. Acho que você pode entender melhor com o que estamos lidando.
- Bom, ele é um ser vivo assim como eu e você. Acredito que ele estava comendo os animais do povo da cidade por estar faminto, sem encontrar alimento na floresta. Se você quer que ele sobreviva, o alimente quando acordar.
- Mas o que ele é? Por que ele é assim? - Hugo perguntou sem tirar os olhos da criatura.
- Não existe razão para nenhum de nós ser o que é. Nós apenas somos. Vossa Majestade está correto em escolher a vida ao invés da morte e eu irei lhe prestar toda assistência que precisar.
E seguindo esse combinado, Mael começou a cuidar secretamente, juntamente com Hugo, da criatura que eles batizaram de Gael, um nome comum entre os draois. Eles o alimentavam, banhavam e tentavam se comunicar e aos poucos Gael foi ficando cada vez mais amistoso.
Eles passaram a colocar roupas íntimas em Gael para cobrir suas partes, mas nada além disso, pois qualquer peça a mais ele rasgava. Em seguida o ensinaram a comer sentado à mesa com talheres e esperar educadamente pela refeição. Até que ele aprendesse, Hugo tinha que segurá-lo para não avançar em Mael, que servia os pratos.A princípio tiveram que lhe servir carne crua, cozinhando aos poucos dia após dia para que ele se acostumasse.
Copiando os dois que cuidavam dele, Gael passou a andar mais ereto e tentar pronunciar algumas palavras, mas sem muito sucesso. Foram muitas mordidas e muitos arranhões até que seus cuidadores pudessem se aproximar tranquilamente.
Gael dormia em um quarto onde foi proibida a entrada de empregados, e quando precisava descer até o salão para se alimentar, Mael se certificava de que não haveria ninguém no caminho para que Hugo pudesse levá-lo. Um dia, muitos meses depois que Gael havia sido acolhido no castelo, quando Hugo entrou no quarto notou que um de seus chifres havia caído. Dois dias depois, o outro chifre caiu também.
E no dia após perder o segundo chifre, Gael amanheceu com febre e fortes dores, fazendo com que Hugo chamasse Mael com urgência para ver o que acontecia. As dores eram nos dentes que estavam todos ao mesmo tempo começando a cair para dar lugar a novos. Durante o dia todo dentes humanos cresceram em sua boca, fazendo com que os antigos e afiados caíssem. Ele cuspia sangue e os próprios dentes um por um numa tigela ao lado da cama e bebia o chá feito por Mael para aliviar a febre e as dores.
Após perder os chifres e os dentes, Gael pareceu ficar ainda mais receptivo e disposto a aprender a se comportar, e passou a aprender impressionantemente rápido. Ele aprendeu as primeiras palavras e começou a interagir de maneira mais humana com Hugo e Mael.
Havia passado um pouco mais de um ano quando foi decidido que Gael estava pronto para viver entre as pessoas. Os pêlos em seu rosto foram raspados e o cabelo cortado curto, e feito isso e o vestindo ele ficou irreconhecível. Além de perder suas características bestiais, ele estava encorpado, muito diferente de quando havia chegado faminto. Hugo passou a andar sempre acompanhado de Gael, sem que as outras pessoas fizessem ideia de onde ele vinha. Todos acreditavam que a criatura da floresta havia sido morta e que Gael era apenas um favorito do rei.
Durante a primeira semana em que Gael fazia companhia para Hugo ocorreu tudo bem, até que uma vez enquanto eles estavam no salão, Teodoro juntou-se a eles, tendo acabado de voltar de uma longa viagem. Quando Gael o viu seu sangue gelou e ele ficou paralisado de medo por alguns segundos antes de se levantar abruptamente e correr para seus aposentos. O rei pediu licença e foi atrás dele.
Hugo foi encontrá-lo deitado em posição fetal na cama, tremendo e assustado.
- O que aconteceu? - ele perguntou depois de se sentar numa cadeira ao lado da cama.
- O homem... - Gael balbuciou.
- Teodoro? O homem que chegou antes de você sair? - Hugo perguntou e Gael fez que sim com a cabeça - O que tem ele?
- Eu dormindo. Eu o vi.
- Você o viu enquanto dormia? Em um sonho? - novamente Gael concordou balançando a cabeça, mas dessa vez mais nervosamente - E como foi o sonho?
- Ele e o cavalo marrom e branco. Correndo pro escuro - Gael respondeu e começou a chorar, então Hugo o abraçou até que ele ficasse tranquilo novamente.
Hugo tentou dizer a si mesmo que aquilo não passava de uma coincidência ou engano. Mas Gael parecia estar muito certo do que tinha visto e era estranho de se imaginar alguém sonhando com uma pessoa que nunca viu antes, além do fato de que o cavalo de Teodoro realmente era marrom e branco.
Se passaram duas semanas antes que Teodoro tivesse que sair em outra viagem, mas dessa vez ele caiu do cavalo e morreu antes de chegar ao seu destino. Ao saber da notícia Hugo ficou aos prantos, de pesar e de culpa, por não ter feito nada para impedir a morte de seu melhor amigo.

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Era dos Contos
FantasiaEra dos Contos é uma releitura de contos clássicos dos irmãos Grimm e poemas épicos, todos passados em um universo de fantasia, mas aqui a história não acaba no felizes para sempre e nós acompanhamos os personagens durante todas as suas vidas, então...