12.🍷

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Gabriel

Observei ela comendo o queijo e tomando o vinho como se fosse a descoberta mais gostosa da vida, a forma como a Kitra não consegue ser discreta quando gosta de algo me dava vontade de rir.

- Nossa, isso realmente tá muito gostoso.- disse após tomar mais um gole do vinho.

- Te falei que iria gostar.- peguei a taça dela a servindo mais.

Ela cortou mais um pouco do queijo deixando o prato no meio da mesa e me ofereceu, percebi que ela gostava de queijo brie com mel, já que comia com um gostoso sem igual. A forma como ela apreciava as coisas em seus mínimos detalhes, de alguma forma me encantava, era como se ela tentasse descobrir a felicidade nas pequenas coisas.

- Animada para as aulas?- perguntei quebrando o silêncio.

- Um pouco, estou mais ansiosa do que animada.- sorriu.

- Posso te fazer uma pergunta?- pedi enquanto ela saboreava mais uma taça.

- Pode.- se virou pra mim como se quisesse prestar mais atenção.

- Desde quando você escolheu psicologia?-  perguntei - Minha irmã sempre falava sobre você gostar de direito, achei estranho você trocar tão de repente.

Ela pareceu pensar, como se estivesse articulando a melhor forma de me falar. Percebi o olhar dela mudar um pouco, talvez tenha sido apenas um achismo da minha parte, ou talvez, eu esteja certo.

- Psicologia é uma faculdade muito boa, meu irmão me mostrou a melhor parte dela, isso me encantou.- sorriu de canto - Mas pra ser sincera, eu escolhi depois do acidente. Eu precisava agradecer ele de alguma forma, Nicolas sacrificou a vida por mim e com isso eu acabei destruindo o sonho dele. Acredito que eu não tenha mais esse direito de decidir sobre algo que ele se importava tanto.

- Calma, sacrifício?- a olhei confuso. Eu tinha escutado tudo, mas após ela dizer essa palavra, foi como se todas as outras não fizessem sentido.

Kitra respirou fundo, ficou quieta por poucos segundos mas depois tornou a falar.

- Naquele dia, eu também estava no carro.- percebi ela ficar cabisbaixa, olhava para a taça enquanto passava a ponta dos dedos pelas bordas - Mas consegui sair bem do carro, então poucos sabem disso.

- Se não quiser falar, tudo bem.- tentei amenizar a situação, se é que tinha como.

- Não, é bom conversar com alguém sobre isso.- respirou fundo e me olhou - Na verdade, estávamos nós três, eu, o Nicolas e o Victor. Tínhamos passado o dia todo juntos, aproveitando a folga do meu irmão, mas de última hora surgiu um treino urgente e tivemos que levar o Victor as pressas pro CT. Na volta, estava chovendo e a pista era muito escorregadia. Acontece que um dos carros perdeu o controle e acabou vindo em nossa direção.- não pude conter meu olhar assustado-  No desespero, Nicolas soltou o cinto dele e se jogou na minha frente pra me proteger. 

- Kitra, eu...- fiquei sem palavras.

- O Nicolas morreu por minha culpa.- tornou a me olhar - O lado dele foi o menos atingido, só tinha amassado um pouco, já o meu ficou destruído.- vi as lágrimas inusitadas cair sobre os olhos dela- Se meu irmão tivesse ficado no lugar dele, se ele não me protegesse... ele não teria morrido.

Olhei  as mãos dela que estavam trêmulas e a perna dela chacoalhava em agitação, eu nunca a vi chorar, nem mesmo no dia do enterro dele. Eu tinha uma visão da Kitra completamente diferente da de agora, por nunca ter visto ela tão vulnerável, acreditei que fosse fria nesse sentido. Agora percebo que ela só consegue ser boa em controlar suas emoções.

- Eu não tenho o direito de decidir que sonho seguir, porque meu irmão deixou os dele de lado naquele dia, só pra me salvar.- suspirou - Desde então os sonhos dele se tornaram os meus. Faço psicologia pra um dia conseguir honrar e seguir o que ele começou.

Eu não sabia o que dizer, na verdade a forma como ela via e lidava com as coisas me deixava intrigado. Ela não carregava a "culpa" da morte do irmão como um fardo, mas sim como um desejo ardente de fazer da memória dele, algo honroso. Não sei se essa seria a melhor forma de lidar com as coisas, de certa forma, ela deixava seus desejos mais sinceros de lado para viver os dele, porém ainda assim, ela consegue amar e fazer com que sua escolha seja algo bom.

- Desculpa se o que eu falar for soar um pouco pesado.- tentei ser cauteloso nas palavras - Mas caso o Nicolas não tivesse feito nada, não sei se ele conseguiria viver aqui sem você.- a encarei e percebi ela olhar pra mim também- Eu admiro a forma como você leva a vida, só que você era o xodó dos seus irmãos, nenhum deles dois conseguiria ter a força que você tem. Então, de certa forma, que bom que o Nicolas foi corajoso naquele dia.

Os olhos dela se mantiveram fixos aos meus, por um misero segundo eu esqueci completamente até mesmo do que estávamos conversando, porquê aquele olhar dela me manteve hipnotizado, não conseguia parar de olhar pra ela sem ao menos me dar conta do tempo que isso levava.

- Nunca te agradeci, mas obrigada pelas palavras no dia do enterro do meu irmão.- disse quase que em um sussurro.

Pra ser bem sincero, eu ao menos lembrava disso, estava tão fora de mim naquele dia quanto qualquer outra pessoa que foi pega de surpresa com a maldita notícia. 

- Não tem porquê agradecer, tenho certeza que ele faria o mesmo se fosse o meu caso.

Ela sorriu ainda um pouco cabisbaixa. Me levantei sem falar nada o que a fez ficar um pouco perdida, fui até a cozinha, peguei o bolo e mais uma garrafa de vinho. Dessa vez, uma que estava pela metade. Percebi de longe que foi a vítima de uma falha tentativa de beber ela por completo.

- Se eu quisesse chorar eu teria ficado na casa da Ester.- voltei com a boleira e a garrafa de vinho nas mãos os colocando na mesa, Kitra riu enxugando o rosto - Vim aqui pra comer do bolo que eu fiz.

- Mas quem fez o...- ela tentou me corrigir mas a impedi antes mesmo que terminasse de falar.

- Não me importa o que você acha, eu fiz, ponto.- servi o vinho nas nossas taças, ela riu mais ainda balançando a cabeça negativamente - Aliás, vou pedir para que entreguem mais três garrafas de vinho e mais queijo.

- Tá louco? Amanhã...- a interrompi novamente. 

- Fica quieta.- arqueei a sobrancelha e ela levantou as mãos em rendição - Vamos beber até amanhecer.- antes mesmo dela abrir a boca novamente eu apontei o dedo - E você vai calar a boca e curtir o último dia de férias que temos.

- Mas eu não ia reclamar.- falou de imediato antes que eu a cortasse - Só ia perguntar se você quer uma coberta, tá ficando frio aqui fora.

Sorri por ver o desespero dela de falar tudo rápido para que eu não a impedisse. Assenti a cabeça e ela se levantou adentrando a casa, aproveitei e pedi em um mercado online para que entregasse mais vinhos, queijos e alguns petiscos.

Sagrado Profano🍷• Gabriel BarbosaOnde histórias criam vida. Descubra agora