4.🍷

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Gabriel

- Meu Deus garoto, que susto!- Kitra falou estremecendo ao me ver.

- Que susto digo eu, você tá parecendo uma alma penada tarde da noite e nesse escuro.- liguei a luz da cozinha.

- Desculpa, é o costume.- pegou o pano que tinha pendurado enxugando as mãos.

Fui até a geladeira, peguei uma garrafa de água, tirei do bolso um remédio para dor de cabeça o tomando. Joguei a cartela que já estava vazia no lixo e tampei o vaso de água. 

- Não te faz mal tomar tanto remédio assim?- ela perguntou se encostando no balcão.

- Me faz mal sentir dor.- coloquei o vaso na bancada - Tá fazendo o que acordada uma hora dessas?

- Estávamos assistindo filme, mas os dois acabaram dormindo e eu esperei terminar pra descer e lavar as coisas.- explicou e eu assenti.

Ela ficou em silêncio e eu também. Puxei uma das cadeiras sentando ali mesmo, deitei minha cabeça na bancada sentindo dilatar. Tenho tomado remédios desde cedo e nada mudou, a dor insuportável continuava aqui. 

Ouvi a Kitra tornar a fazer o que estava fazendo e continuei deitado por um tempo. O cheiro de chá instalou na cozinha e ao levantar a cabeça, vi ela com duas xicaras na mão, me estendendo uma.

- Chá de camomila, vai te ajudar com a dor de cabeça e na agitação.- peguei da mão dela.

- Obrigado.- sorri tomando um gole.

- Sinto muito pelo jogo de hoje.- falou tornando a se encostar onde antes estava - Foi um jogo difícil.

- Não foi difícil, eu que joguei mal.- olhei para a xicara enquanto a fumaça do chá subia como se ainda estivesse fervendo no fogo.

- Não deixa de ter sido difícil.- persistiu.

- Joguei mal, Kitra.- a olhei - Pode falar a verdade.

- Não estou mentindo, o jogo foi acirrado desde o inicio até os últimos minutos.- também me olhou - É tão complicado aceitar isso?

- Você assistiu?- ela assentiu - Não me viu perder o gol nos pênaltis?

- Vi, jogando sozinho qualquer um perde.- garotinha persistente, que raiva.

- Não fiz meu papel, entenda isso que será mais fácil.- falei firme tirando minha atenção dela.

Tornamos a ficar em completo silêncio, conseguia ser bizarro a forma como ela consegue ficar quieta sem emitir barulho algum, com certeza consegue sair e entrar em qualquer lugar sem ser percebida. O chá estava muito bom, coisa que raramente eu consigo tomar agora está descendo como se fosse água. 

Ela se aproximou arrastando uma das cadeiras que tinham livres do balcão, colocou a xicara sob elas e respirou fundo.

- Quando o Victor chega em casa em momentos como esse eu sempre falo a mesma coisa pra ele. " Você não é o único".- a olhei novamente - Digo o mesmo a você. Gabriel, você não é o único!

- Olha, Kitra...

- Deixa eu falar.- me interrompeu - São onze jogadores dentro de campo, você não é o único. Se houve uma falha, todos vocês falharam. Acha mesmo justo se culpar por tão pouco?

- Você não entendeu mesmo.- me virei pra ela - Perdi um gol decisivo, com um chute eu conseguiria tirar um time inteiro do sufoco.

- Mas não tirou, porquê você não é o único, Gabriel!- falou firme me calando - A culpa não é totalmente sua, aonde estavam os outros que não conseguiram fazer com que vocês necessitassem tanto desse pênalti? O que eles fizeram pra evitar isso?

- Não foi um jogo fácil, Kitra.

- Então o jogo pode não ter sido fácil pros outros mas pra você não?- e novamente, ela conseguiu me deixar sem palavras, engolindo meus próprios argumentos - Para de querer carregar a culpa de algo que você não fez sozinho, não se sinta tão importante assim.- rir.

De certa forma ela estava certa, ela conseguiu quebrar todo meu argumento em um passe só. Engoli em seco, minha cabeça parava de doer aos poucos mas ainda a sentia pesar, era como se toda essa preocupação me deixasse inquieto, nervoso e frustrado ao mesmo tempo.

Ela levantou da cadeira, lavou a xicara e a guardou. Percebi que ela retornaria pro quarto da minha irmã então a chamei.

- Se não quiser ficar de vela o quarto de hospedes tá aberto, dorme lá.- sugeri.

- Obrigada.- sorriu dando de ombros.

- E parabéns pela aprovação, pelo visto você vai ser uma ótima psicóloga.- falei fazendo ela se virar pra mim novamente - Nicolas estaria orgulhoso. 

- Sei que sim.- sorriu - Obrigada, mais uma vez.- deu de ombros subindo as escadas.

Conheço Kitra a anos, literalmente a vi crescer. Era uma adolescente quando eu e os irmãos dela a apresentou pra a minha irmã. É uma menina bonita, isso é inegável mas seria estranho da minha parte conseguir a ver com outros olhos. Ela e a Dhiovanna se dão tão bem por serem o opostos uma da outra, minha irmã é completamente explosiva mas ao mesmo tempo feliz e positiva em qualquer situação. Já a Kitra é tão tímida que as vezes eu me pergunto como será que ela lida com a exposição de ser irmã de jogador.

Posso malmente a ver, porém a conheço com a palma da minha mão. Elas são unha e carne então tudo que a Kitra faz, minha irmã faz questão de contar aos meus pais e como eles a amam, gostam de comemorar com ela. 

Gosto do jeito que a família dela também nos trata, a dona Fernanda é uma grande amiga da minha mãe e eu diria que a melhor coisa foi, eu, o Victor e o Nicolas termos apresentado nossa família, é um vinculo muito bom. 

Falando no Nicolas, ele faz falta. Digo não só pra mim, mas pra todos que um dia conviveram com ele. Principalmente pro Victor Hugo, as vezes quando converso com ele consigo ver atitudes e ouvir palavras que com certeza Nicolas falaria, os dois conseguem ser idênticos até nisso. 

Nossa amizade e parceria foi realmente muito leal, uma pena que não tivemos tempo pra vivermos as loucuras que tínhamos planejado.


Sagrado Profano🍷• Gabriel BarbosaOnde histórias criam vida. Descubra agora