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O sol morno da manhã entrava pela cortina entreaberta da janela do meu quarto. Eu não queria levantar da minha cama nem tão cedo. O aconchego do meu cobertor era bem mais promissor do que mais um dia monótono de férias dentro de casa.

Estiquei meu braço até alcançar meu celular em cima do criado-mudo. Chequei minhas notificações: algumas mensagens, fotos das minhas amigas viajando pela Europa, dizendo o quanto elas queriam que eu estivesse lá; alguns e-mails de promoção de livros; e-mails de aviso do semestre seguinte da faculdade. Respondi minhas amigas, dizendo que estava com saudades (e estava mesmo). Eu as adorava, mas não entendia a necessidade de passar todos os três meses de férias longe de casa. Eu podia viajar tanto quanto todas elas, mas sentada na minha cama. Meus livros eram muito mais interessantes do que cinco a dez horas dentro de um amontoado de aço chamado avião. Eu nunca entraria naquilo. Era simplesmente perigoso demais. Devido ao fuso horário, sabia que elas não responderiam no mesmo momento, mas levei um susto quando minha mãe entrou em meu quarto como se a casa estivesse pegando fogo. Ela tinha um amontoado de roupas nos braços e um telefone entre o pescoço e a orelha.

- ...ora. Você poderia ter ligado antes, não é, querido? Você nunca vem pra casa, e quando avisa, já está entrando num avião?! - ela pausou, escutando quem quer que estivesse do outro lado da linha - É claro que não estamos te proibindo de voltar, você sabe o quanto a sua família te ama! Eu e seu pai vamos te buscar no aeroporto, é claro.

Eu estava paralizada, apenas escutando o monólogo de Dona Margareth ao telefone. Ainda estava meio dormindo, e lutava pra conseguir extrair alguma coisa daquelas palavras corridas.

- Ah, a Lívia está em casa, as férias dela mal começaram. Vai ser bom pra vocês finalmente passarem um tempo juntos. Vocês são irmãos, mas mal se conhecem. - disse minha mãe, olhando finalmente para mim, depois de recolher todas as roupas que ela julgava sujas da grande bagunça que estava meu quarto.

Congelei por alguns segundos. Matt estava voltando pra casa? Há quantos anos ele não fazia isso, quinze? Apenas sabia quem era ele pelas fotos que minha mãe tinha espalhado pela casa. Sempre soube da história, eu a escuto desde que era um bebê. Mamãe e papai sempre quiseram ter um filho, mas nunca conseguiam. Então, resolveram adotar uma criança, e adotaram Matheus, aos dois anos e meio de idade. Três anos depois, para a surpresa de todos, eu brotei na barriga da mamãe e foi só felicidade. Menos para Matt. Ele tinha tido problemas com outras crianças no lar adotivo onde estava, então não aconselhavam dar-lhe irmãos. Meus pais não ligaram muito pra isso até que Matt começou a se fechar. Com quase seis anos, ele quase não falava mais. Tinha começado a se comportar mal na escola. Sempre arranjava encrenca com os meninos maiores. Com a gravidez de risco, meus pais resolveram colocá - lo no melhor internato de Londres, onde minha tia e madrinha Beatrice se estabilizou. Com ela por lá para acompanhar Matt, meus pais puderam finalmente se dedicar à mim. Matt veio poucas vezes nos visitar depois disso. Tia Beatrice sempre vinha pelo menos uma vez ao ano e o trazia enquanto era pequeno, mas Matt, depois que cresceu um pouco mais, sempre inventava alguma desculpa para não deixar o internato. Meus pais estão sempre indo visitá - lo em Londres, mas, como já disse, eu não gosto de aviões. E atravessar o Atlântico de barco não é tão rápido assim. Dessa forma, cresci praticamente como filha única. Lembro muito pouco de Matt, ainda criança. Alguns flashes dele pela casa, mas são tão poucos que são mais como um fantasma. Depois de terminar o ensino médio, Matt se candidatou para uma faculdade na Inglaterra mesmo, e nem se incomodou em cogitar alguma coisa por aqui. Eu até o entendo. Não deve parecer mais como um lar para ele depois de tantos anos.

- Lily? Querida? ALOU! - minha mãe disse estalando os dedos na minha cara.

Balancei um pouco a cabeça e tirei as mecha de cabelo escuro da frente do rosto. Olhei e ela parecia assustada.

- Filha, você está me ouvindo? - ela parecia preocupada

- Estou sim, mãe. - sorri.

- Era Matheus no telefone. Ele está deixando Londres em meia hora. Deve chegar a noite.

Engoli em seco.

- Por que ele resolveu de repente voltar pra cá? Ele não viveu a vida toda lá? - eu tentava desesperadamente encontrar algum sentido naquele telefonema.

- Ei, isso são ciumes que eu estou vendo? - foi a vez dela de sorrir - Querida, você sabe que não precisa disso.

Abaixei os olhos. Eu não estava enciumada. Estava assustada. Eu não fazia idéia de quem diabos era o Matt. Nunca tinha trocado mais do que três palavras com ele, e eu mal sabia falar na época. Ele era uma pessoa nova naquele ambiente que era só meu, da mamãe e do papai. Um completo estranho pra mim, mas não para eles. Meu irmão que nunca quis me conhecer, viver comigo.

- Você sabe que não é isso, mãe. É só que ele é um completo estranho pra mim. Entendo que ele também é filho de vocês, mas eu não passei nenhuma parte da minha vida com ele. E o Matt também nunca fez questão de me conhecer...

- Não diga isso, querida. Você e seu irmão vão se conhecer melhor agora pessoalmente. Também não é culpa dele que você tenha pavor de avião. E não seja injusta, eu sei que vocês trocam email. Ele me contou isso.

É claro. Um email de feliz aniversário todo ano, um email de natal, e nada mais. Nossa correspondência virtual se baseava nisso. Mas claro que nunca contei nada pra minha mãe, não depois de ela ter ficado tão feliz por ele ter dito que queria me mandar um email. Sempre tentei puxar assunto nas minhas respostas, mas elas todas eram ignoradas. Depois de um tempo, passei a seguir a mesma regra que ele. Aniversário, Natal. Apenas isso.

Me encolhi de volta no cobertor. De repente, estava mais frio. Não é como se eu fosse morrer de fome com Matt aqui. Nossa casa era grande o suficiente. Meus pais sempre foram pessoas com uma boa condição financeira. Eles mandaram o filho pra estudar na Europa, céus! Se eu quisesse, eu estudaria na Europa. Eu estaria agora na Europa, com minhas amigas. Não deve ser tão difícil assim lidar com um jovem de vinte e três anos que cresceu fora do país. Ele também deve gostar de ler. Deve gostar de música. E essas são duas coisas que eu gosto muito.

- Mocinha, saia logo dessa cama. Trate de arrumar esse quarto, e desça pro café. Seu pai já deve estar arrumando as coisas lá embaixo também. Matheus avisou em cima da hora, mas ainda temos tempo. Você vai querer ir com a gente buscar ele no aeroporto?

- Você sabe que eu não piso em um lugar daqueles, não sabe, mãe? - minha voz saiu abafada pelo edredom sobre a cabeça.

Senti o peso dela sobre o colchão quando se sentou do meu lado.

- Lily - ela tirou a coberta da minha cabeça, sob protestos - Filha, eu sei que vai parecer estranho a princípio, mas seu irmão é um bom menino. Vocês vão se entender, vocês já são bem grandinhos.

- Você pode pelo menos me dizer o porque de ele estar voltando pra casa agora? - suspirei.

- Eu também não sei direito. Ele falou algo a respeito de estar cansado das pessoas de lá e da faculdade, mas eu não questionei quando meu filho disse que está voltando pra casa. - ela falou com doçura.

- Mas ele não está, sei lá, nos finalmentes da faculdade?

- Quando você souber o peso de um TCC, não vai tirar a razão de Matt querer um pouco de descanso. - ela riu - Agora levanta e vamos comer alguma coisa.

Ela se levantou e seguiu com as roupas para a lavanderia. Eu finalmente me levantei e dei uma olhada panorâmica pelo meu quarto, sem o amontoado de roupas. Ele não estava tão ruim assim, então dei prioridade ao meu estômago. Troquei de roupa e desci as escadas, esperando realmente que a chegada de Matt não virasse a casa de cabeça para baixo. Mal sabia eu o quão errada eu estava.

Entre nós e paredesOnde histórias criam vida. Descubra agora