Dei três batidas na porta. Sabia que Matt estava acordado, então só esperei e segurei a bandeja a minha frente. Pouco tempo depois, ele abriu a porta.
– O que você quer? – disse, sem humor. Por alguns segundos, retomei a coragem que tinha escorrido do meu cérebro assim que ele abriu a porta.
– Eu trouxe o almoço. Não pareceu que você saiu do quarto hoje, então...
Ele tomava a bandeja da minha mão na metade da minha frase e se preparava pra bater a porta, como sempre. Mas, dessa vez, eu estava preparada e coloquei o pé na frente, entre a porta e a parede. Ele tinha empurrado a porta com força, machucando meu pé com a pressão, mas não fraquejei e não tirei o pé do vão. Ele olhou pra trás, tentando descobrir o porque da porta não ter batido. Quando encontrou meu pé, com a faixa vermelha produzida pelo impacto da porta, e eu segurando a maçaneta, o que eu consegui ver ali foi estranho. Era surpresa, com um pouco de... admiração?
Ele ainda tinha os olhos fixos nos meus dedos atados na maçaneta. Acompanhando o olhar, entendi. Meus dedos tremiam, ainda que de leve.
– Eu... – tentei manter a voz o mais firme possível, ainda que meu pé latejasse forte. – Eu ouvi você escutando Lost Kids of London?
A surpresa era ainda maior agora. Ele me encarava como se tivesse uma melancia na minha cabeça e ele não visse qualquer sentido.
– Você conhece?! – questionou, arqueando as sobrancelhas.
Acenti com a cabeça.
– Bem, isso sim é uma doideira. Não fazia idéia que uma filhinha de papai escutava rock pesado britânico. – ele disse com desdém.
– Não é como se só você pudesse conhecer a música deles. – retruquei.
Ele riu. Um sorriso largo e exuberante. Como alguém poderia ter um sorriso tão bonito como aquele? Foco, Lily. Foco.
– Bom, não importa. Não tem mais como eles continuarem a tocar. O baixista deles meteu o pé e o restante da banda não achou justo continuar.
– É, eu li algo a respeito. Eles nem ao menos fizeram um show de despedida. Quer dizer, não que eles tivessem que fazer, mas já estavam fechados em alguns festivais no Reino Unido, então foi injusto também com os fãs.
– Você acompanhava bem eles, hein.
– Eu faço bom uso do meu computador. – sorri sem graça. Eu ainda estava de pé na porta e ele parado com a bandeja na mão.
Nos encarávamos a alguns segundos, quando então eu ouvi quase como um sussurro.
– Eu machuquei seu pé?
– Perdão? – eu ainda não acreditava que estava presenciando o cair de uma muralha bem a minha frente.
– Eu machuquei você com a porta? – ele falou com a voz um pouco mais alta agora.
Aquilo me assustou e me surpreendeu ao mesmo tempo. Parecia que ele só tinha aquela atitude ruim por ser um reflexo do que estava recebendo. Talvez fosse assim que tivesse aprendido a viver. Eu não sabia da história do Matt, então era um mundo totalmente novo a minha frente. Eu não podia perder essa oportunidade de conseguir algum avanço.
– N–não, tá tudo bem. – eu me mexi, tentando colocar um pouco de peso no pé dolorido. Péssima idéia, eu quase perdi o equilibrio e caí.
– Ah, claro. E isso foi o quê? – ele colocou a bandeja em cima da cama e veio até mim. – Vem, senta aqui.
Ele estava me chamando pra entrar no quarto dele? Aquilo não fazia o menor sentido. Eu sentei, embasbacada por um momento, me perguntando se eu havia realmente julgado Matt precipitado. Eu deveria estar enlouquecendo
– Eu preciso te perguntar uma coisa... – eu comecei, não sabendo direito como abordar o assunto. Eu tinha que ser sincera se eu quisesse que tudo desse certo.
– Sabia que havia alguma coisa por trás desse prato de comida. – e lá estava o velho Matt de volta. Em apenas três segundos, eu consegui que a muralha voltasse de onde, provavelmente, nunca tinha saído. Aquilo que aconteceu deveria ser apenas eu, tentando pular um muro alto demais para as minhas pernas. Se eu quisesse fazer aquilo funcionar, eu tinha que tomar cuidado.
– Eu só não entendo. Desde que você chegou aqui, me pergunto qual foi o motivo que te fez voltar pra cá. – eu encarava os olhos de Matt, que não desgrudavam de mim, como se a qualquer momento eu fosse atacá – lo.
– Eu não tenho que te dar nehuma satisfação. – ele respondeu, sério. As vezes, me perguntava se Matt tinha herdado aquela sutileza do meu pai, de alguma forma.
– Eu só quero que isso funcione... – disse, desesperançada.
– Você acha realmente que você, tendo a vida que tem, vai entender alguma coisa do que passa na minha? – Matt estava se irritando, eu podia ver. – Você escutou a desgraça que foi quando você saiu ontem. Ele nem ao menos acha que eu posso passar duas horas nessa casa sem te atacar! Não é como se eu fosse alguém normal por aqui, não é como se ele me aceitasse.
– E eu te defendi! – retruquei, me sentindo ofendida. – Eu cheguei e falei pra eles que estavam errados!
– Eu ouvi muito você me defendendo! Você nem mesmo abriu a boca quando ela disse que eu não deveria ter voltado, hoje mais cedo. Eu nem ao menos preciso que você me defenda. Isso tudo aqui não é escolha, não foi minha opção. Por mim, você poderia estar vivendo sua vinha hipócrita enquanto eu vivia a minha bem longe daqui! Você nunca vai saber como é viver uma vida inteira sozinha, porque você sempre teve esses dois te paparicando a sua volta! Não haja como se pudesse solucionar todos os problemas dessa casa, porque você não pode! Isso tudo aqui já é errado desde antes de você aparecer! – ele falou, apontando pra si mesmo.
– Pois pode ficar sabendo que eu defendi sim! Você deveria estar surdo de raiva para não ter me escutado levantando a voz, pela primeira vez na vida, ontem quando voltei! Não seja burro pra achar que eu acredito que essa casa é perfeita, porque eu sei que não é! Eu não pedi pra nascer, eu ao menos pedi pra que eles te mandassem pro internato! Eu também não tive escolha! Cresci aqui, porque foi isso que me foi imposto! Você nunca fez questão de nada disso! Você passou a vida inteira longe, nunca teve que se preocupar com regras! Você podia sair, ir a quantos lugares quisesse, mas se eu vou a uma livraria, essa casa já vira um campo minado! Não é como se eu pudesse escolher! Eu não posso! Você nunca quis vir pra cá, todos esses anos. Eu só queria entender o porquê de ser agora! Se eu pudesse trocar, daria toda essa casa e toda a vivência que tenho aqui pra você, já que é tão importante! – minha voz saiu mais trêmula do que eu queria, então simplesmente ignorei a dor no meu pé e saí daquele quarto, enquanto Matt me encarava assustado. Parecia que a tal princesinha que ele vira em mim, tinha agora virado uma criatura perigosa.
Me virei, segurando a maçaneta. Tentava, sem conseguir sucesso, controlar todo aquele sentimento que brotava no meu peito. Se ele me culpava por ter nascido, isso já tinha passado dos limites. Eu tinha tentado. Tentei realmente ter uma conversa com Matt, mas eu só fui atacada e acusada de coisas que, na cabeça dele, eram culpa minha. Era um caso perdido. Eu não iria me deixar abalar por um garoto como aquele.
– IMBECIL!
Dessa vez, fui eu quem bateu a porta.
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Entre nós e paredes
RomanceLívia tem 17 anos e acabou de terminar o ensino médio. Filha de uma família muito tradicional, adora livros e música, e passa boa parte do seu tempo livre na sua cama, explorando lugares através das palavras. Essa é a única forma que conhece outros...