Capítulo 26

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Já haviam algumas noites que Abel dormia sem ter sonhos. O que era estranho, mas de certa forma, uma benção. Havia sido amaldiçoado pelos anos no exército para então ser perseguido pelo fantasma do irmão em seus pesadelos. Mas, ultimamente, aquele caos em sua cabeça cessou, permitindo noites mais tranquilas.

E, definitivamente, aquilo mudou o seu comportamento. Ou, pelo menos, foi o que Clark notou. Abel estava menos deprimido, ajudou-o nas outras tarefas de casa e até mesmo sugeriu um jantar romântico para ambos. Esse Abel era até um tanto desconhecido para o advogado, afinal, se conheceram nas trincheiras e, desde então, cuidou dos traumas de Abel, esquecendo a si próprio.

Naquele momento, Saunders terminava de arrumar a mesa, ajeitando os talheres como se estivessem em um restaurante chique. Parecia orgulhoso do seu feito, com as bochechas rosadas por trás da longa barba grisalha e com um sorriso nos lábios. Thomas deixou-se levar pela alegria do cônjuge, hipnotizado por sua presença. Até lembrar-se que deveria tirar a torta de frango do forno.

E assim o fez, indo em passos apressados para a mesa e usando um pano qualquer que encontrou para segurar a travessa quente. Colocou ao centro da mesa, sentindo o cheiro da massa perfeitamente assada e do frango temperado invadir todo o recinto.

— Você machucou as mãos? - Abel perguntou, olhando em direção ao parceiro.

— Não, não! - Clark respondeu rapidamente, colocando o lenço que carregava sobre o ombro. — Apenas aquele desconforto rotineiro...

Deixe-me ver... - Abel colocou as mãos do companheiro entre as dele, gentilmente virando as palmas para cima. Realmente, não havia machucados, no máximo uma certa vermelhidão. Mesmo assim, Abel se inclinou gentilmente e deixou alguns beijos na área, provocando risadas de Clark, sejam pelas cócegas que sua barba causava ou pela situação em si.

— Agora estão melhor? - Clark brincou, ainda em meio às risadas.

Sim! - Abel respondeu, levantando-se e roubando um beijo dos lábios de Thomas. — Agora, eu corto a torta! Descanse um pouco!

Clark deu de ombros, balançando a cabeça, não iria interromper Saunders, ainda mais sabendo que ele estava certo. Sentou-se em uma das cadeiras, Abel não possuía matemática como um forte seu, mas conseguiu dividir de maneira simétrica. O jantar foi, definitivamente, como ambos planejaram, mas não sabiam se conseguiriam repetir em semanas tão corridas como aquelas.

Conversaram sobre o dia, riram de comentários bestas e aproveitaram a companhia alheia. Ao terminarem, Abel até mesmo ofereceu uma dança com Clark. Encontrou um disco de vinil antigo e empoeirado para tocar na pequena vitrola que mantinham na sala. Saunders puxou o companheiro pela mão, passando o braço por trás das costas de Thomas, porém deixando que o outro guiasse seus passos, principalmente considerando que parecia ter dois pés esquerdos para a dança. Continuaram brincando ao ritmo da música, acompanhado o som do violoncelo e do piano.

Foi um dos primeiros momentos em toda aquela agitação que Clark sentiu-se verdadeiramente relaxado. Aproveitando a companhia do homem ao qual mais ama no mundo e a oportunidade de estar vivo para ter aquele momento. Próximo da música terminar, deitou a cabeça sobre o ombro de Abel, olhando pela janela a beleza de viver debaixo daquele lindo céu noturno.

Mas, ainda sim, precisava acordar cedo no dia seguinte. No momento em que se deitaram na cama, demorou apenas alguns segundos para adormecerem. Abel pensou que seria mais uma noite tranquila.

Até se sentir em um lugar diferente. De início, sentiu uma queimação em seu peito, uma sensação de desespero palpitando seu coração. Precisou respirar fundo inúmeras vezes, lembrar-se que aquilo era um sonho, apenas um maldito sonho. Sentia-se preso em uma caixa escura, porém infinita. Deu alguns passos sobre aquele abismo, não conseguia ver um palmo em sua frente, nem mesmo ouvir algum som. Era um grande percurso de incertezas.

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