OITO MESES DEPOIS
PAULO
Olhei pro céu escuro e, por alguns instantes, pensei que estivesse feliz. O vento meio frio se chocava contra meu corpo, sacodia a camiseta no meu ombro e me fazia arrepiar. As vozes de dentro dos barraco vizinho, eram altas e o barulho de música estrondando, entrava pelos meus ouvidos. Amassei o papel nas minhas mãos, dei alguns passos e encarei as milhares de luzes daquele lugar... do meu lar. Eu tava no alto do morro, dava pra ver todo o meu comando e a diferença da nossa realidade para os prédios dos ricaços.
Aquela paisagem era uma bela ironia. Enquanto uns comia o resto de lixo que o diabo deixou, outros jogavam comida fora, esbanjavam carrão e um apartamento dá hora de frente pro mar, como se nós nem estivéssemos aqui atrás. Se eu pudesse escolher... bem, eu ainda estaria no mesmo lugar, mas pelo menos daria a minha gente um lugar melhor. Talvez um lugar com menos lixo na rua, com menos esgoto a céu aberto e menos pobreza. Baixei os olhos e encarei a mochila cheia de droga aos meus pés. Será que era as drogas e as armas? Se aquelas coisas sumissem, o governo olharia pra aquele lugar com outros olhos? Sorri sem querer, sem pensar.
— Conta outra. — Sussurrei. — Se não fosse eu, seria outra pessoa, se não fosse um vagabundo nascido na própria comunidade, seria o policial da UPP bancando de bonzinho. — Olhei pra cima de novo e encarei as luzes, o céu fechava.
Nasci aqui, passei a minha infância correndo por essas ruas e fazendo, das amizades, a minha família. Aqui não só tinha bandido, traficante, sequestrador e matador de verme. Não! Não conheço todo mundo, mas posso garantir que tem um bando de trabalhador honesto, que só parou aqui porque o governo mandou tomar no cú. Minhas mãos agarram o ferro que me impedia de cair do primeiro andar e trinquei os dentes. A Rocinha não foi criada pra ser escoria do mundo. Pra ser relatada em filmes estrangeiro como fonte de droga e tráfico de arma. Sorri enquanto agarrava a grade de ferro com mais força. Tem até serie falando que nós sequestra por diversão. Como se a falta de emprego, o preconceito com a cor e com o nosso lar, fosse mito. Que belo mito!
Não vou abrir minha boca e dizer que num tive escolha. Nós teve. Eu podia tá curtindo um emprego dá hora no asfalto. Eu tive condições de estudar e a sorte de ter um diploma. Eu tive. Mas 80% dos moradores tão aqui porque o aluguel é barato... ou porque aqui é mais fácil juntar uns tijolo, ou umas madeiras, e construir um barraco no pé do morro. A Rocinha pode ter sido a segunda e terceira opção de um bando de gente, mas depois que nós se conhece... parece que num tem outro lugar melhor. Pode ter um bando de traficante meia boca disputado espaço, uns filho da puta que rouba, mesmo as minhas ordem sendo lei, mas aqui tem cultura. Aqui tem lazer, tem gente vindo de fora pra ver o que nós construiu sem ajuda do engomadinho sentado lá no seu "trono".
Aqui tem mercado por todo lugar, tem a porra de um mirante, tem restaurante com vista dá hora e uns baile que, garanto, é o melhor. Mas o governo e a televisão só passa as desgraça que o tráfico provoca. Deveriam passar a pobreza do lugar, a falta de água, o lixão que brota porque o prefeito enfia o dinheiro no meio do cú. Deveriam mostrar a dificuldade de encontrar um emprego digno só porque nós mora aqui! Amassei ainda mais o papel na minha mão e joguei longe deixando a raiva sair. Aquele papel dizia que o governo transformaria a Rocinha numa favela piloto. "Programa Comunidade Cidade" dizia que o governo investiria 2 bilhões de reais em saneamento, habitação e a porra toda. A Rocinha seria outra dali há 5 anos. Eu sorri. Eu conhecia gente que morava ali a 50 anos e ouvia a mesma coisa. E olha só onde nós tava!
Respirei fundo, tentando raciocinar, mas xinguei alto. Ah, se o governo soubesse que aqui tem um monte de gente só precisando de uma oportunidade para mudar o mundo!

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O Crime Perfeito - Livro 4
Ficção GeralUm brinde ao doce sabor da vingança. Livro contem: Cenas de sexo Palavrões Apologia ao Crime Mortes Estupro Crime de Ódio Violência contra Mulher Tortura física e psicológica