Capítulo 17

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— Não consegui dormir nada – resmungou Bia, esfregando os olhos avermelhados.
Todos haviam compartilhado a mesma noite que a colega e tinham grandes olheiras em volta dos olhos. Cada estalo ou barulho fazia o grupo entrar em alerta, principalmente depois que os corpos sumiram. Sentaram-se todos juntos, aproveitando o calor do outro, mas não ousaram acender uma fogueira.
O sol da manhã aquecia o lugar com sua luz morna, mas o mal-estar ainda assim não passava; o metrô os aguardava. Samuel em pé tomava a claridade diretamente no rosto, mantendo os olhos fechados.
Michel compartilhou pedaços de carne seca que encontrou na guarita, com todos. O grupo aceitou sem pestanejar.
— Espero que esta não seja minha última refeição – sussurrou Samuel.
— Não nos dê esperança – retrucou Gabriel.
— Pessoal! – Naomi chamou a atenção para si. – Acredito que seja uma boa hora para irmos.
— Concordo – disse Michel. – O dia mal começou, então teremos pelo menos dez horas de luz, deve ser o bastante.
— Ainda não sei o porquê de entrarmos lá – falou Livya, apontando para a caverna.
— Matéria-prima – respondeu Bia. – Tudo indica que aquelas pessoas pegam a matéria-prima da droga ali. E sabendo do que é feita, fica mais fácil...
— ... de entender o porquê de as pessoas morrerem tão rápido – completou Livya, entendendo o pensamento.
— Sim.
Juntaram-se aos pés da escadaria. Não precisaram checar seus equipamentos, afinal os mantiveram consigo desde a noite passada. Deram início à subida, e a cada passo parecia que a boca do metrô aumentava sobre eles. Esperar pelo dia foi uma ótima ideia, pois o teto do lugar estava cheio de buracos e frestas largas, o que fazia a luz entrar em abundância.
Gabriel terminou de subir a escada e quase soltou o ar, aliviado. Conseguia ver todo o lugar, sem dificuldades. Havia uma grande construção, com catracas enferrujadas faltando pedaços por conta do tempo; no canto esquerdo, uma guarita com uma porta de ferro, saindo da parede, ao lado da porta, uma grande fresta com um vidro grosso. O rapaz entendeu que o lugar era onde um vigia ficava de olho na multidão
Plantas nasciam por todo o chão e paredes, chegando a cobrir o concreto em algumas áreas. Da metade ao fim, parando rente à parede, havia uma depressão onde o chão fora escavado dando lugar a dois trilhos. Ambos acabavam em túneis separados, mas aquele que estava perto da parede havia desmoronado, tornando a passagem impossível.
O cheiro de musgo era predominante e o único perceptível, o que foi uma surpresa para todos, pois esperavam o cheiro de carne em decomposição. Bia se aproximou do fim da plataforma, vendo que o trilho era somente uma longa viga de ferro que ia túnel adentro, mas algo estava errado.
A estranheza foi pegando um de cada vez, afinal, tirando as plantas, não havia nada vivo no lugar, nenhum roedor, pássaro ou mesmo insetos, o que não fazia sentido com tanta vida vegetal.
— Tem alguma coisa estranha com esse lugar – comentou Bia.
Como um dos caminhos estava bloqueado por entulho e a estação não tinha nada de relevante, sobrou para o grupo uma única opção, seguir o túnel desobstruído. Livya se aproximou vendo que o caminho descia um pouco e então virava para a direita de forma bruta, sendo impossível ver mais dele.
— Vamos logo com isso então – disse Samuel.
Gabriel segurou uma resposta, pois dessa vez concordou com o Corvo. Fizeram uma formação em "v" com ele na ponta e deram início à caminhada. Um por vez pulou para o buraco no trilho, que estalou em diversos lugares, pois o chão estava completamente coberto por pedras pretas feitas de concreto à volta do ferro.
Os feixes de luz ajudavam em muito a visão, mas ao mesmo tempo deixava alguns lugares escuros, dando ao corredor de concreto uma aparência macabra. Gabriel foi o primeiro a virar na curva e viu que o túnel seguia por pelo menos cem metros em linha reta, logo em seguida desaparecia em uma nova curva.
Todo o caminho era um pouco inclinado para baixo, tornando a caminhada fácil. Passando ao lado de uma escadaria contra a parede que dava a uma porta fechada, logo outra semelhante apareceu do lado oposto.
O musgo era mais presente que antes, junto do frio e da umidade. Mesmo que o sol entrasse, não era o suficiente para fazer nada além de iluminar o corredor. Samuel que era o último da ponta direita do "v" ao lado de Naomi, olhava atentamente uma das portas que estava um pouco semiaberta. Manteve os olhos fixos nela, com atenção. Sentia algo estranho vindo da fresta, e quando finalmente ficou de frente a ela, teve um rápido vislumbre de algo olhando-o de volta.
Foi tudo muito rápido, o que não o deixou ver direito, mas ele conseguiu distinguir algo do tamanho de um cachorro, com longas patas, contudo a estranha criatura desapareceu no escuro, quase de imediato.
Com um movimento ligeiro, Samuel puxou seu revólver e correu até a porta, subiu a escada e parou ao lado esquerdo da parede. Olhou para o grupo que parou de supetão e sinalizou com a cabeça em direção à entrada. Naomi veio logo em seguida desembainhando sua katana e tomando a parede contrária. Usando a ponta da lâmina, empurrou a porta que rangeu ruidosamente ao ser aberta.
Samuel se virou já apontando a arma em direção ao escuro e esperando o pior, mas ele não veio. Olhou em todos os cantos que foram iluminados pela luz que vinha do túnel; um aposento cheio de painéis antigos e alguns barris.
— Viu alguma coisa? – indagou Bia, com a voz um pouco trêmula.
— Não – respondeu Samuel, saindo da sala e sinalizando para Naomi, que guardou a arma. – Devo estar imaginando coisas, desculpem por isso.
— Você quase me mata do coração! – mencionou Gabriel, que relaxou o corpo visivelmente.
Livya se sentiu obrigada a concordar com o colega, mas não criticaria o outro.
A tensão e opressão vinda do túnel somente aumentava mais.
— Estranho – sussurrou Bia. – Os instintos dele raramente falham.
O comentário fez os pelos da nuca de Livya arrepiarem. Os dois voltaram à vanguarda da formação e seguiram novamente, sem nenhuma interrupção.
Até o corpo aparecer, pouco menos de trinta metros da curva.
Com as lâminas em punhos, o grupo se aproximou, mas logo a falta de movimentação na barriga e no corpo, deixou claro que era somente um cadáver. Gabriel, junto de Bia, se aproximou e ficou de cócoras analisando o moribundo.
— Gabriel! – exclamou Bia, com os olhos arregalados.
— Sim? – Foi a resposta do homem.
— Conhecem? – perguntou Michel, ansioso.
— De certa forma – respondeu Gabriel, que puxou algo do pescoço do morto e mostrou ao grupo. Uma faca de arremesso. – Era um dos guardas.
O homem estava com uma cor branca semelhante a papel, que mesmo para um cadáver não era natural, e em seu tórax, peito e pernas, havia buracos, como se alguma coisa tivesse sugado algo ali, deixando-o seco nessas partes. Ao lado da mão dele, um pedaço branco chamou a atenção de Bia, que pegou o objeto, mas se arrependeu no mesmo momento. Era um pedaço de maxilar humano. Foi então que o horror começou.
A Corva soltou o osso, com um pulo para trás. Gabriel fez o mesmo, mas pisou em algo que estralou de forma diferente das pedras. Ele levantou o pé e viu uma costela humana rachada ao meio.
— Que porra é essa? – falou Samuel, que voltou a reparar no chão e sentiu o coração acelerar.
Toda a curva estava repleta por ossos, deixando o chão completamente branco. Ossos de humanos se misturavam com os de animais, e pelo tamanho de alguns crânios, não eram somente os de adultos.
Arrastando os pés, eles voltaram a se mexer. Cada poro do corpo de cada um gritava para que saíssem daquele lugar de morte, mas eles tinham que saber o que era a matéria-prima. Completaram a curva se deparando com algo inesperado.
O túnel acabou abruptamente, e no lado oposto, a parede estava cheia de buracos. Gabriel chegou mais perto e percebeu que aquele buraco tinha o formato de cone, ficando mais fino em baixo. Na parede toda os buracos apareciam. No fundo, algo grande e redondo se encontrava até se mexer.
Grandes patas se ajeitaram, e duas das oito se esticaram preguiçosamente, o abdômen era grande e redondo. Uma aranha negra, maior que um veículo, repousava calmamente no fim do cone.
— É disso que vem a matéria-prima? – perguntou Michel, sem esperar por uma resposta.
Então, os ossos à direita do grupo se mexeram repentinamente, voando em todas as direções. Algo preto pulou acertando a perna de Livya, que urrou no mesmo momento.
Viraram-se a tempo de ver um aracnídeo do tamanho de um cachorro tentar enfiar as presas totalmente na perna da jovem que o empurrava desesperadamente, impedindo que as presas fossem além do que já entraram. Naomi, por impulso, pega sua katana e com uma estocada acerta o animal que chiou feito um gato e caiu no chão se contorcendo.
— Gabriel!! – gritou Naomi, mas não era necessário.
O Corvo puxou sua Magnum e disparou três vezes, estourando o abdômen inchado da aranha no fundo do poço. Seguiram alguns instantes de silêncio, e então, dos buracos nas paredes, centenas de pernas começaram a sair.
— Rápido! – berrou Naomi, que apoiava Livya por um dos ombros. – Vamos.
Michel conseguiu, ainda que trêmulo, segurar o outro braço da jovem que gritava de dor, e começaram a correr de volta, esmagando os ossos sobre os pés.
Samuel e Bia disparavam enquanto corriam em direção ao mar de pernas que começou a encher as paredes, o chão e o teto do túnel. Um misto de sons se misturava e amplificava dentro do corredor; os gritos do grupo junto a de corpos aracnídeos se mexendo e o sinistro som semelhante a centenas de gatos que a maré de aranhas sibilava.
Enfim, Gabriel carregou sua arma, mas deixou uma bala cair e se perder no chão durante isso. Mirou para trás onde as primeiras criaturas entravam no túnel e disparou sem dó. Diversas aranhas explodiram com a força de sua arma. Os pedaços voaram, mas isso não era o bastante; as outras simplesmente não ligavam e passavam por cima dos restos de suas semelhantes.
Samuel viu a porta abrir mais cedo e correu em sua direção, gritando aos outros:
— Aqui, rápido!!
Não foi preciso uma explicação, Gabriel e Bia se juntaram aos que levavam Livya, fazendo com que subisse a escada mais rápido, e Samuel, da porta, disparava nas aranhas que estavam perigosamente próximas. Praticamente se jogando para dentro do quarto, Samuel fechou a porta, mas não rápido o bastante, muitas pernas apareciam da fresta, empurrando-a contra o Corvo que lutava para mantê-la fechada. Vendo isso, Naomi vai acudir o companheiro.
Gabriel se desvencilhou de Livya que uivava de dor, e levou a arma para a fresta disparando, espantando as aranhas, dando tempo para que a dupla fechasse a porta de ferro.
Livya agarrava a perna, enquanto o barulho de corpos batendo contra a porta fazia a confusão de sons se misturar.
— Tem alguma coisa! – gritava Livya. – Alguma coisa está crescendo dentro de mim!!
Samuel foi até a novata e puxou a calça dela para fora do corpo, deixando-a somente de calcinha. Na perna onde a aranha havia picado, algo inchava e parecia crescer de forma anormal.
— Segurem ela! – gritou para os outros, e então se virou a Livya. – Isso vai doer.
Assim que Livya foi imobilizada pelo grupo, Samuel pegou sua faca de arremesso e cortou a parte de cima da coxa da colega, onde algo crescia. Fez uma linha com a lâmina, colocando uma mão de cada lado e espremeu como se fosse uma espinha. Dali saiu algo semelhante a uma gelatina vermelha com algo esbranquiçado.
— Pólvora, Gabriel! – mandou Samuel, que pegou a gelatina e jogou no chão.
Gabriel soltou Livya, pegou uma de suas balas e passou a Samuel. Ao pegá-la, ele usou a faca ensanguentada para abrir e esparramar a pólvora sobre o ferimento. Soltou a carcaça inútil da bala, levou a mão ao bolso e pegou um isqueiro, que acendeu sobre a ferida aberta de Livya.
Um rápido clarão junto ao grito da jovem encheu o aposento por um momento, e então Livya desfaleceu. Samuel caiu sentado, suando muito, e diz:
— Acho que ela está bem agora. – Olhou a gelatina que derretia lentamente. – Sangue coagulado. Isso explica os buracos no corpo, mais cedo.
Michel, trêmulo, deixou a cabeça da parceira sobre seu colo enquanto as aranhas ainda tentavam entrar.


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