Diversos pilares de concreto semelhantes aos da entrada, ficaram espalhados pelo grande espaço do salão do casarão. Outra escada subia para o segundo andar, acabando no piso superior.
O quarteto estava em um lugar similar a uma grande sala de estar, em que diversas pessoas andavam atarefadas, mas não sem analisá-los com o canto dos olhos. Corredores saíam de todos os cantos do aposento e outros deles. Tudo era muito iluminado, pois a claraboia fora feita em vidro, mas um resto de madeira no centro da sala e as tochas presas nas paredes, deixou explícito que era o fogo que iluminava as noites.
Um homem com o tamanho de uma criança, literalmente com o corpo infantil e cabeça de adulto, saiu de um dos caminhos laterais dirigindo-se ao grupo.
— Vocês devem ser os Corvos – disse com a voz de criança, e pelo tom havia alívio. – Thomas já está esperando. Se puderem me acompanhar...
Sem esperar por uma resposta, a pequena figura parte de volta por onde veio. Naomi vendo que não tinha muita escolha, segue-o logo em seguida. Andaram por um corredor longo o qual lembrou bastante o de Ninho. Ali havia menos quartos, e os que tinham pareciam ser muito maiores que os dos Corvos.
Portas escancaradas deixavam à vista pessoas trabalhando com papéis ou dormindo em algum beliche. Livya entendeu que todos ali estavam ligados ao funcionamento da Vala. Adentrando um corredor mais amplo, o guia os levou a uma grande entrada em arco, virando-se a poucos metros.
— Ele os aguarda. – E novamente, sem esperar nenhuma resposta, o homem vai embora.
Naomi foi a primeira a entrar no aposento onde Thomas se encontrava no centro. Um homem de corpo esquelético repleto de feridas, com a cabeça o cinco vezes maior do que a de um adulto, tinha o rosto normal de Thomas, mas também um olho junto de dois narizes, uma orelha que saía diretamente da testa e duas bocas. Uma delas com um sorriso fixo e sem lábios, sendo somente os dentes, gengiva e a forma de um sorriso feito pela carne, e a outra que ficava logo abaixo do ouvido esquerdo daquilo que seria o rosto do homem. Esta continha grandes dentes que se amontoavam, e um pedaço da língua, vez ou outra, se mexia por entre os lábios repuxados.
Gabriel espiou a reação de Livya e não ficou surpreso ao ver o choque no rosto da jovem. Ouvira rumores sobre o porquê de Thomas ser assim. Falavam que quando sua mãe estava esperando por ele, na verdade, era para ser trigêmeos, mas somente um conseguiu desenvolver o corpo. Os cérebros dos outros dois acabaram se fundindo em um só, junto a pedaços do rosto. Há quem diga que existam três pessoas distintas vivendo na cabeça de Thomas, e que somente ele escuta e conversa com elas.
Após o choque inicial, Livya olhou o resto da sala, e diferente de todo o resto, havia somente o homem sentado em uma estranha cadeira com um suporte para seu pescoço aguentar o peso da cabeça, mas um leve movimento ao fundo deixou visível um dos brutamontes, que portava igual aos de antes uma grande faca presa à cintura.
— Nos desculpe pela demora – falou Naomi.
Os três olhos do homem, incluindo o da testa, se fixaram nela.
— Estava esperando que demorassem muito mais – disse Thomas. – Fiquei surpreso pela rapidez que vieram.
— Olá, Thomas! – Gabriel cumprimentou.
— E trouxeram o engraçadinho de novo. – A boca um pouco abaixo da orelha se mexeu como se falasse algo somente para Thomas que ficou quieto, sorrindo logo em seguida. – Ficaram sabendo do nosso problema com a S.L.?
— Exato – retrucou Michel. – Gostaríamos que nos desse o máximo de informações possível.
— Entendo. – E novamente, Thomas parecia estar ouvindo algo que somente ele conseguia. – Tenho algumas informações interessantes. Devem ter dúvidas também.
— Por que...? – Livya conseguiu acumular coragem para dizer. – Por que alguém usaria uma droga capaz de matar tão rápido?
Finalmente, algo que não eram os olhos ou a estranha boca se mexeu no corpo de Thomas. Seus dedos bateram na cadeira algumas vezes, e ele ficou encarando a outra. Livya manteve o olhar, se segurando para não se distrair com o sorriso sinistro da boca sem lábios.
— Estão trazendo crianças desta vez – falou Thomas, com uma voz que parecia ser a de outra pessoa. – Como chama? – Dessa vez, a voz foi a mesma do início da conversa.
— Livya.
— Você viu como as coisas são aqui, não é mesmo? Andou pelas ruas e viu você mesma! E se eu lhe falar que existe um meio de escapar de tudo isso, um meio de se ser quem quiser, de não sentir que foi jogado fora pela própria família, ou deixado para apodrecer por uma sociedade que nos trata feito resto? Tudo o que precisa fazer... – Com uma das mãos, Thomas pegou um pequeno pote de plástico com algo branco dentro, levantando-o em direção à jovem. – É cheirar isso.
Naomi disparou no mesmo momento indo em direção ao frasco. O brutamonte no canto fez um movimento como se fosse ir atrás dela, mas se manteve em seu posto. Thomas jogou a droga para a Corva que a pegou no meio do ar, e continuou:
— Mas como isso é possível? Deve estar pensando, Livya. O S.L. o deixa em um estado de transe que faz com que viva seus sonhos, e essa realidade se transforma no sonho. Enquanto seu cérebro não derreter, você pode viver nesse mundo de mentira. Agora me diga, depois de tudo o que viu, não acha que o desespero e o desejo de ter uma vida real não são grandes o bastante para usá-la? E daí que mal vai durar uma semana, porque nesse tempo você estará vivo, diferente de toda a sua vida.
Livya teve que concordar; era uma droga movida pelo desespero. Sentiu que apertava os pulsos de raiva. Alguém capaz disso era um verdadeiro monstro e merecia a morte.
Gabriel foi junto à parceira que ainda analisava o pote, olhando-o por alguns momentos. Levou a mão à bolsa de remédio e pegou um semelhante que continha também um pó branco.
— Como sabem que essa droga não é como esta? – perguntou chacoalhando o pote para Thomas. – Tem a mesma cor, e pelo que vejo, a mesma textura também.
Voltou o frasco para sua bolsa, com cuidado. Os Corvos chamavam aquele produto de Último Meio. Uma droga capaz de dar energia e aumentar os reflexos por um curto período, mas ao usá-la sua expectativa de vida encurtava, além de ser extremamente viciante. Só era possível obter um frasco antes de alguma missão importante.
— Esse é o problema, Gabriel – respondeu Thomas sem tirar os olhos da droga. – Não podemos saber, pois é exatamente igual senão idêntica a um número gigantesco de outras. Alguns até tentaram vender uma dessas outras, passando-as por S.L. Só quem sabe são os próprios traficantes.
— Sobre isso... – Cortou Naomi devolvendo o frasco a Thomas, que o guardou no mesmo momento. – Disse que não conseguiu pegar nenhum deles vivo?
Thomas se mexeu incomodado, e novamente a boca perto de sua orelha voltou a soltar sons. Disse:
— Pegamos alguns deles, mas sempre se matavam. Todos diziam a mesma coisa: "Não vamos trair o Grande Irmão".
— Uma seita? – perguntou Michel, que sentiu um arrepio subir pela coluna.
— Não, já tive que lidar com esses cultistas algumas vezes. É algo como lealdade absoluta, quase uma lavagem cerebral. Antes de falar mais sobre isso, preciso mostrar uma coisa.
Com um movimento de mão, o homem que ficou até aquele momento no canto, saiu levando consigo algo embrulhado, passou por Thomas e estendeu os braços dando o pacote para Naomi que o pegou por reflexo. Logo em seguida, o homem voltou lentamente ao posto.
Naomi olhou para Thomas que retribuiu o olhar, e sem perder tempo, tirou de dentro do tecido um pedaço de ferro que a fez suar frio por um momento. Um cano grosso com um pedaço de madeira que servia para se segurar; uma arma improvisada.
Gabriel a pegou das mãos frias da colega e levou o cano ao nariz, sentindo o cheiro de pólvora. Era muito difícil conseguir armas de fogo no mundo, e sem a ajuda do Bunker, isso diminuía muito, mas pólvora pura era impossível.
— Naomi – Michel disse baixo –, tem mais uma coisa na sacola.
A Corva voltou a mão para dentro do embrulho e puxou um longo prego com um saquinho de plástico do lado, sem a ponta. Analisou melhor o objeto e percebeu que o prego encaixava perfeitamente no cano da arma. Do lado liso, dentro do saco, continha pólvora.
— Eles têm essas armas – disse subitamente Thomas. – Elas lançam esses pregos a uma alta velocidade quando a pólvora estoura. Perdi bons homens para isso.
Toda a situação havia escalado muito rápido, não era algo simples como Michel pensou antes. Estavam diante de algo grande, talvez muito grande.
— Mais alguma coisa? – indagou Gabriel, ainda olhando a arma improvisada.
— Não muito, eles mal tinham algo consigo tirando a droga e essas armas, mas nós tivemos um pouco de sorte e conseguimos este panfleto do último.
Todos os quatro se voltaram ao homem sentado. Gabriel foi até ele no mesmo instante. Guardou a estranha arma em seu cinto enquanto andava e pegou o panfleto. Um papel rosa, com um desenho de uma taça com bebida e uma azeitona. Na parte de cima estava escrito também em rosa o nome "Momento do Viajante". Soltou um riso abafado.
— Eu sei de onde veio isso – disse dobrando o papel delicadamente e o guardando junto à arma. – Isto é do Oásis.
— Interessante – resmungou Thomas, parecendo estar ouvindo alguém. – Não ajuda muito, na verdade. O Oásis é uma das comunidades livres.
Gabriel se sentiu obrigado a concordar, as comunidades livres eram exatamente o que o seu nome dizia, uma cidade ou vila fora da influência do Bunker, onde criavam suas próprias regras. Em lugares assim não havia Ninhos, mas os Corvos sempre estavam por eles, vigiando.
— Temos um lugar para ir – falou Michel. – Pelo menos um ponto de início.
— Sim – sussurrou Naomi.
Thomas, vendo que o grupo estava se preparando para sair, os interrompeu uma última vez:
— Gostariam de ver os usuários? – Percorreu os quatro com os olhos, vendo suas reações. – Temos salas com eles. Claro que algumas somente com os corpos também.
Sem esperar por uma resposta, o homem fez um sinal ao brutamontes que veio a seu chamado, retirou de trás da poltrona modificada duas rodas de madeira as quais acoplou aos lados da cadeira.
O líder da Vala estava agora em uma cadeira de rodas, sendo levado ao lado oposto do aposento até a uma entrada.
— Por aqui! – falou sem se virar.
Não vendo muita opção, o grupo seguiu pelo mesmo caminho. Diferente do que viram até um pouco antes, o corredor em que estavam era escuro, iluminado apenas pelas tochas nas paredes. O som das rodas ecoava no corredor longo e frio.
— Então é por isso que não vimos nenhum nas ruas – comentou Naomi.
— Esperto – concordou Michel.
Livya olhou de um para o outro, não conseguindo entender sobre o que falavam. Através da luz de uma das tochas, viu que Gabriel, diferente dela, acompanhou o raciocínio.
— Do que estão falando?
— Não havia nenhum corpo – respondeu Naomi. – Se a situação está tão ruim quanto nos falaram, então seria mais do que normal ver os corpos.
— Levaram os moribundos e os esconderam – falou Gabriel. – Thomas, o que fizeram com os mortos?
A cadeira de rodas continuou a deslizar à frente do grupo, o som dos dedos do homem voltou a bater no apoio de braço, e sem se virar, ele respondeu:
— Enterramos eles, e a cada dia que passa, precisamos abrir mais covas.
Thomas parou diante de uma porta de ferro. O brutamonte manobrou a cadeira, deixando-a de frente à entrada, logo em seguida andou até o mecanismo da porta e com esforço a virou, fazendo o som de ferro raspando ecoar corredor adentro. Sem tirar as mãos da trava, ele empurrou a porta.
O cheiro de fezes, vômito e sangue, inundou tudo, vozes delirantes sussurravam ou gritavam. Naomi se aproximou e olhou para a entrada, ficando pálida.
Dezenas de pessoas estavam todas esparramadas pelo chão, algumas se contorcendo violentamente, já outras pareciam dormir pacificamente caso não fosse o sangue vazando de seus orifícios. Meia dúzia de empregados tentavam ajudar, mas seus rostos estavam extremamente abatidos.
— Este é somente um dos quartos – falou Thomas. – Tenho outros oito em estado semelhante.
Michel se aproximou do homem mais próximo à porta, encostando o polegar no pescoço dele, atrás de pulso, mas não encontrou nada. Estava morto.
— Chega a ser engraçado – comentou Thomas, com a voz vazia. – Eles estão com seus corpos morrendo de forma terrível, e mesmo assim, vivem os melhores momentos de suas vidas. Lindos sonhos lúcidos.
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Corvos
Ciencia FicciónA Terceira Guerra dos Antigos fez a humanidade perder toda a glória, obrigando os sobreviventes a se esconderem no Bunker. Setecentos anos passaram desde o acontecimento, e para manter a ordem o grupo armado Corvos foi criado.