Livya ficou sentada diante do casal, no lugar em que Sandy mandou levantar algumas barracas para os feridos. Cinco outros Corvos estavam deitados, sendo tratados por Luís que andava apressado por eles.
— Está com cheiro de pomada – comentou Gabriel para a parceira.
— Sim, estou com o peito inteiro melado – respondeu Naomi.
Mesmo sofrendo dois ferimentos graves, Naomi não corria risco de morte. O ferimento, segundo Luís, foi raso, mas ela não poderia continuar lutando.
— Quem diria que as coisas iriam se inverter – falou ela, sorrindo para Gabriel.
— Estranho, tô acostumado a ser remendado, e não remendar.
Haviam perdido dois Corvos apenas. O chão estava abarrotado de atacantes que pereciam. Sandy, junto a alguns outros, cuidavam dos corpos.
— Achei que fosse morrer – revelou Gabriel, com os olhos de quem havia chorado recentemente.
— Por favor, Gabriel – respondeu Naomi, pálida pela perda de sangue. – Uma facadinha dessas não vai me matar.
Livya sentia alívio ao vê-la bem. O choque que teve ao descobrir que Naomi estava entre os feridos foi grande, afinal de contas, mesmo depois de tudo, essa era a primeira vez que a via realmente machucada.
— Livya? – chamou a colega. – E você? Não consegui te ver durante o ataque.
— Bem – respondeu sorrindo à outra, mas precisou disfarçar a dor das marcas de garra que riscavam suas costas. – Naomi, aquela mulher do bastão era a Corva mais forte do Ninho. Você se saiu bem, muito melhor do que eu me sairia, provavelmente teria morrido.
— Não foi muito justo – comentou a ferida. – Ela não sentia dor, percebi isso depois, mas ela não aparentava sentir dor, seria impossível se levantar com as tripas para fora.
— E lá se vai minha fome – resmungou Gabriel.
— Mas é frustrante – falou Naomi. – Cheguei tão longe e não vou participar do fim.
Sandy subiu sobre um dos carros, fazendo com que toda a atenção focasse nela, falando:
— Tivemos duas baixas e seis feridos – comentou, amarga. – Vou deixar este acampamento nas mãos de Luís e mais cinco outros Corvos, o resto continua comigo.
A loira se aproximou do local, onde os feridos conversavam individualmente com eles. Naomi, que inicialmente não gostou da mulher, ia mudando de opinião ao vê-la incentivando os feridos, e o modo que tratou os corpos com respeito, fez Naomi gostar dela.
— Amanda fez um estrago – comentou Sandy diante da jovem. – Mas fico feliz por ter você do nosso lado. Inclusive, ninguém aqui, nem mesmo eu teria dado conta dela.
Abaixou-se, com os joelhos na grama, reverenciando-a rapidamente com a cabeça. A cabeleira dourada dançava no vento. No meio do caos, a trança acabou sendo desfeita.
—Obrigada – falou Sandy, levantando-se logo em seguida. – Creio que irão ficar com sua companheira? – indagou para Gabriel e Livya.
Livya, mesmo querendo com todas as forças ficar junto de Naomi, não conseguia esquecer o ódio por Irmãzinha, e Gabriel estava prestes a responder, quando a ferida disse:
— Ambos vão junto. – Olhou de forma cortante ao rapaz que estava prestes a discutir. – Esta é nossa missão e iremos até o fim, por nós e pelos que morreram.
Gabriel precisou engolir o que queria dizer, concordou completamente com o pensamento dela. Sandy esperou alguns instantes por uma resposta, mas ao perceber que não viria, falou:
— Muito bem, vamos partir logo, se preparem.
— Ela é uma mulher interessante – comentou Naomi, vendo-a se distanciar.
— Pode ficar tranquila – disse Livya, apoiando a perna da amiga. – Vamos vingar nossos companheiros e irei matar Irmãzinha pessoalmente.
O rapaz que voltou a usar a pedra de amolar na arma, parou por um instante ao ouvir o que a novata dissera. No fundo, sempre achou que seria Naomi a enfrentar a brutamontes. Depois do que viu, ela era a única com alguma chance real. Não disse nada, mas temeu por Livya.
— Mais uma coisa! – voltou a gritar Sandy, que subiu no carro outra vez. – Mandei Marcelo trazer o Besourão.
O burburinho de conversas estourou em todos os lugares diante da notícia. Livya não entendeu o motivo daquele alvoroço, mas sentiu que logo descobriria. Assim, se despediu de Naomi, indo tomar o lugar de motorista no veículo.
— Gabriel – chamou Naomi.
— Diga.
— Quantas balas sobraram?
— Só quatro.
— Entendo – respondeu pensativa, então falou: – Fique de olho nela.
— Sim.
Assim que deixaram o lugar seguro para os feridos, a comitiva saiu, novamente com Sandy na dianteira. Diferente de antes, que saíram em doze carros, agora eram somente nove, e um deles voltava à Cova para pegar o Besourão e outros dois a fim de que ficassem com os machucados.
Gabriel se sentou ao lado de Livya, que fazia caretas de dor sempre que encostava no banco. Com uma nova grama na boca, ele falou:
— Vi seu machucado mais cedo. – Olhava para frente enquanto a brisa batia em seu rosto. – Fico feliz que não tenha contado pra Naomi.
— Não achei certo – respondeu ela, sem graça por ter sido descoberta. – Ela quase morreu, mesmo se fazendo de forte. Está pálida feito um lençol branco.
O rapaz se sentiu obrigado a concordar. Naomi sempre teve a mania de querer parecer bem, mesmo não estando.
O carro deu um pulo quando passou por cima de uma pedra e ambos pularam nos assentos.
Diferente do início da viagem, que mesmo com o clima pesado ainda era descontraído, naquele momento havia mudado para tensão. Todos os Corvos olhavam em todas as direções procurando pelo menor indício de um novo ataque. De forma inconsciente, acabaram com uma formação que lembrava a ponta de uma flecha.
— Lembro que eu vi aquelas pessoas antes – falou Livya, referindo-se aos antigos adversários.
— Foi quando estávamos indo para o Oásis – respondeu Gabriel, que enquadrou algumas árvores rente à estrada. – São o povo do deserto, bandidos em geral. Mas fico surpreso por eles terem aceitado nos atacar. Grande Irmão deve ter feito uma proposta irresistível.
— Como assim?
— Eles não aceitam moedas – falou Gabriel, colocando-se no meio dos bancos. – Precisam de recursos e alimento, mas mesmo assim sabem que não se mexe com Corvos. Se aceitaram fazer essa emboscada, então algo grande foi proposto.
Livya pensou na S.L., mas tirou a ideia quase de imediato da mente. Ficou matutando, sendo preciso o outro segurar no volante para desviar de uma árvore.
A noite os engoliu e a lua escondida fazia a escuridão reinar. As estrelas ajudaram a desviar de árvores e pedras, mas o destino era claro. Mais à frente, a luz subia da floresta: fogo.
Passaram por uma parede de árvores, de frente à base inimiga. A duzentos metros, o forte de madeira crescia imponente diante do grupo. Todos desceram boquiabertos com a construção colossal. Gabriel olhou para as paredes, perdendo as esperanças de entrar.
— Ainda bem que a princesa mandou trazer o Besourão – disse Nahara, que se aproximou deles. – Senão as coisas seriam complicadas.
— O que é este Besourão que todos falam? – perguntou Gabriel, ainda olhando as muralhas adiante.
— Não quero estragar a surpresa, mas posso adiantar que essas paredes não vão aguentar um segundo. – E então mudou de assunto. – Fiquei sabendo de Naomi, ela está como?
— Vai sobreviver. Infelizmente não fará parte do ataque, o que é uma perda significativa. – Foi Sandy que respondeu, aproximando-se.
— Uma Corva capaz de vencer Amanda é realmente um peso a perder – concordou Nahara.
— Ainda esta noite tudo estará acabado – falou Sandy, ficando ao lado deles. – Ansioso para voltar para casa?
Gabriel não havia parado para pensar sobre aquilo desde que saiu em missão. Estava prestes a dar uma semana que saíra do Ninho, e não conseguia pensar nele como sua casa. Era mais um lugar em que dormia.
— Não – disse, por fim. – Mas dormir no meu colchão é algo que anseio.
Mesmo relativamente longe do forte, era possível ver a movimentação nos muros. As cabeças passavam parecendo vultos enquanto algumas somente ficavam estocadas, olhando-os.
— Corvinos! – A voz amplificada de Grande Irmão chegou ao grupo. – Vejo que escaparam da minha armadilha. Estão de parabéns! Mas creio que não conseguirão fazer nada contra a muralha.
Gabriel percebeu que a voz do homem parecia hesitar em certos momentos. Os outros somente pararam ouvindo. Sandy apertou as mãos com força enquanto escutava.
— Aproveitem enquanto podem, Corvos. – A palavra saiu com escárnio. – Em breve, vou pendurar a cabeça de cada um nos muros.
Com um zunido ardido, a voz desapareceu. Livya esperou insultos ou troca de xingamentos, mas Sandy teve uma atitude que a pegou de guarda baixa.
— Ele acha mesmo que pode com a gente? – falou a loira, virando-se. – Só pode ser brincadeira.
Risos estouraram entre os Corvos. Nenhum deles acreditou que mesmo diante da situação atual foram ameaçados.
— Estou ansioso pro Besourão chegar – murmurou alguém na multidão.
Livya se sentou logo abaixo de uma árvore, encostando-se com a lateral do corpo, tentando proteger as costas feridas, assistia à situação absurda. Ambos os adversários estavam frente a frente, e mesmo assim, os Corvos conversavam e comiam carne seca naturalmente.
Pegou sua machadinha e alisou o corte. Ficando satisfeita com a arma, abaixou o objeto e o colocou na grama macia. O orvalho se concentrava nas folhas, trazendo o frio e uma nuvem de pernilongos. Não era estranho ouvir alguém praguejar enquanto tentava matar os insetos.
Um som estranho a fez pegar a arma na mesma hora. De dentro da floresta um motor ecoava. Todos ficaram animados, aproximando-se das árvores. Gabriel estava entre eles.
Livya se juntou a ele, compartilhando a curiosidade, e ficou boquiaberta com o que viu. Um trator modificado se aproximava. Uma concha de ferro protegia totalmente a parte da frente se estendendo por metade do veículo. Na frente, um vidro blindado ajudava o motorista a guiar. A concha era mantida por duas vigas de ferro soldadas nas laterais do trator. No escuro, a máquina lembrava um besouro, percebeu Livya. Saiu das árvores, ficando em frente ao portão do forte.
Sandy correu animada para ver o motorista.
— Não deve ter sido fácil chegar aqui!
— A floresta não ajudou, mas essa criança... – falou o motorista dando tapas no volante. – Passa por cima de qualquer coisa.
— Pessoal – gritou Sandy, pendurada no trator. – Acredito que esteja tudo certo. Em breve, a cabeça de Grande Irmão estará sobre o muro.
A concordância foi unânime. Ela voltou a falar:
— Eles têm aquelas armas estranhas – referia-se aos lançadores de pregos. – Por isso, tenho uma proposta interessante. Quem quer vir junto comigo para derrubar o muro e participar da primeira troca de tiros?
Livya ficou tentada a fazer parte do ataque inicial, mas logo refutou a ideia, não poderia correr o risco de se ferir até encontrar a assassina de seu parceiro. Sandy escolheu oito Corvos que montaram nas partes possíveis na máquina. O pedaço de ferro chacoalhou assim que o motor ligou.
— Está na hora! – gritou Sandy com a voz embargada por sede de sangue. – Vamos matar cada um!!
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Corvos
Science FictionA Terceira Guerra dos Antigos fez a humanidade perder toda a glória, obrigando os sobreviventes a se esconderem no Bunker. Setecentos anos passaram desde o acontecimento, e para manter a ordem o grupo armado Corvos foi criado.