Capítulo 28

8 5 0
                                    

Sentando-se na cama, Irmão coçou o queixo, despreocupado. O cômodo era grande, com uma janela de dois metros que dava diretamente no pátio abaixo. Havia um guarda-roupas feito de madeira nova à direita da cama e uma mesa com caixas contendo pilhas de papel no centro.
As paredes e o chão eram feitos completamente de madeira. Ele vestiu as roupas que estavam penduradas na cadeira, preparando-se para mais aquele dia enquanto tentava esquecer do sonho que tivera havia pouco.
Irmãzinha vestiu seu elmo, tentando esconder o rosto, mas o movimento não passou despercebido do outro, que falou:
— Não precisa esconder o rosto.
— Tenho vergonha. – A voz infantil saiu com pitadas de tristeza.
— Alguém falou alguma coisa?
— Não, eles não ligam, só me sinto mal sem ela.
— Se for isso, então tudo bem.
Grande Irmão mandou executar as pessoas que caçoavam da irmã há alguns anos, sem que ela soubesse. Após isso, nunca mais ocorreu nenhum acontecimento do gênero. Indo até sua mesa, ele remexeu em alguns papéis, passando os olhos rapidamente por cada um.
A faca que havia usado na primeira vez em que matou, estava guardada na terceira gaveta do móvel, como uma lembrança para nunca esquecer do que passou até chegar ali. A brutamontes envolta por ferro, se sentou no chão, encostando-se na parede. Um acidente acontecera há alguns anos, quando ela fez o mesmo na sua cama, quebrando-a.
— Alguma novidade dos Convertidos? – indagou ele, ainda prestando atenção aos papéis.
— Não voltaram ainda, irmão, e as notícias que tivemos dos nossos no Oásis, me faz acreditar que os três foram mortos.
— Entendo, realmente deveria ter mandado os outros três que estão em melhor estado. – Achou o que procurava, enfim.
— Corvos não são nada demais – retrucou Irmãzinha, que voltou a tirar seu elmo, piscando os olhos que lacrimejavam pela luz. – Posso dar conta de quantos forem.
— Disso eu não duvido – respondeu enquanto lia e passava o dedo indicador da mão esquerda nos lábios. – Mas aquele tipinho é perigoso, então não vamos arriscar.
— Tudo bem, irmão – disse ela de má vontade.
— Vamos indo, logo alguns convidados irão aparecer. – Deixou o papel para trás, encaminhando-se para a porta.
A mulher se levantou no mesmo instante. Seu rosto transpareceu curiosidade, mas voltou a colocar o elmo que escondia aquilo que sentia.
— Quem?
— Logo vai saber, mas não vou mentir para você, é um grupo que odeio quase tanto quanto os Corvos.
Não houve nenhuma reação por parte de Irmãzinha, ela somente adentrou a escadaria e desceu junto a ele. Após os acontecimentos de trinta anos atrás, Ozy se manteve no que restou da sua cidade, com outros sobreviventes, e meses passaram sem nenhuma ajuda do Bunker ou dos Corvos, obrigando-o a começar uma sociedade no mesmo lugar. As pessoas seguiam tudo o que dizia, sem pestanejar, e logo ele se viu como o líder de todos. Quando os sobreviventes tiveram filhos, estes, por sua vez, viam-no com adoração pelas histórias e respeito que os mais velhos demonstraram.
As pessoas que viviam com ele sabiam somente trabalhar com madeira e fizeram o casarão em que vivia atualmente, junto a outras construções e a grande muralha da qual se orgulhavam tanto. Um muro com dez metros de altura, composto por toras de carvalho.
Ele desceu a primeira remessa de degraus, que acabava em um corredor espaçoso, cheio de portas onde outros moravam, e o mesmo acontecia em mais quatro andares. Os passos pesados de Irmãzinha rangiam logo atrás dele. Por fim, chegaram ao primeiro andar. Uma porta com dois metros e meio de altura e quase dois de largura era tanto a entrada quanto a saída.
Pessoas andavam apressadas, mesmo o dia mal começando. Cumprimentavam-no por onde passava. Saiu sentindo o ar puro da floresta encher seus pulmões. A muralha estava lá, protegendo-os de qualquer coisa. Tinha o tamanho de dois quarteirões em seu diâmetro, e perto do topo, uma passarela a rodeava, onde patrulhas cuidavam dos arredores.
Grande Irmão andou mais um pouco olhando para a casa que morava. Uma construção que ocupava quase quarenta por cento do espaço onde todos viviam. Na esquerda, havia um galpão onde as caixas com a S.L. eram armazenadas. Pessoas levavam mais delas, trazidas da fábrica mais cedo. As caminhonetes que levavam a carga eram descarregadas. Os veículos ficaram estacionados ao lado do galpão, e à frente deles, o caminhão-tanque de combustível, quase vazio, parado à frente deles. Foram grandes presentes junto à fórmula da S.L., a pólvora e os equipamentos, dos quais ele precisava pedir mais.
A única entrada era um portão com a mesma altura dos muros, aberto por cordas presas em dois veículos.
— Podemos ver os bichinhos? – indagou Irmãzinha, repentinamente.
— Ainda é cedo – respondeu olhando para os portões. – Por que não vamos?
A irmã tomou a dianteira, levando-os em direção a um amontoado de casas onde a pólvora e o ferro eram armazenados. O som de forja inundava o ar mesmo que pouco, vindo por detrás da porta, e no meio delas, a jaula.
No espaço onde caberia outra casa, estendia-se grades de ferro. O cheiro de dejetos humanos e carniça tornava a aproximação difícil. Irmãzinha se colocou contra a grade, animada, e esticou os braços pegando um dos três encarcerados.
Deslizando os dedos protegidos pela cota de malha, a garota coçava a cabeça de um homem. Ele, igual aos outros dois, estava esquelético, usava somente uma camisa branca e cueca. Grande Irmão se aproximou, sorrindo para a irmã, que se divertia.
Os detidos eram Corvos que tentaram descobrir sua localização e foram pegos. Pensou em matá-los na época, mas então tentou uma experiência. Usou drogas mais leves que a S.L. para drogá-los a ponto da dependência extrema. No final, deu certo, e eles faziam qualquer coisa para ter mais da droga.
Sua irmã cuidava deles como se fossem seus animais. Os Corvos começaram a agir assim para agradá-la, e em consequência, ganhavam mais do pó esverdeado. Uma mulher com o rosto que lembrava o de uma caveira, com pele puxada por cima, colocou-se contra as grades e esticou a mão em direção a ele, seus olhos pretos estavam suplicantes.
Uma caixa de madeira a cinco metros das barras de ferro, estava exposta na frente do grupo. As armas brancas dos Corvos, junto ao pó que tanto ansiavam, eram guardadas lá. Grande Irmão caminhou casualmente até o objeto, pegando um saco de couro marrom.
Vendo a movimentação do homem, os três cativos se chocaram contra as barras. O que estava junto à Irmãzinha, desvencilhou-se dela para fazer o mesmo que seus companheiros.
— Tome – disse Grande Irmão, passando o saco para a outra.
— Aqui, pessoal – falou a garota, feliz, virando um pouco do conteúdo em sua mão e esticando para dentro da jaula. – É para todo mundo, hein!
Os Corvos caíram de cara contra a palma da mão dela, cheirando o pó desesperadamente, tentando ter o máximo para si. Irmãzinha ria enquanto os acariciava novamente.
— Irmão! – A voz de um rapaz veio de trás, fazendo-os se virar. – Eles chegaram.
— Ótimo! – respondeu satisfeito e pousou uma das mãos contra o ombro da brutamonte. – Vamos indo, depois brincamos mais com eles.
— Tudo bem – respondeu ela, de má vontade, retirando a mão e batendo o resto do pó contra a proteção na perna, fazendo os resquícios caírem.
Seguiram o rapaz até o portão. Irmãzinha, olhando pelo ombro, viu os cativos esticarem as mãos desesperadas em direção ao pó que caiu.
O portão estava um pouco aberto, somente o suficiente para uma pessoa sair por vez. Duas mulheres trouxeram a marreta dela, que a aceitou de bom grado.
Um som de rosnado misturado a uma risada animalesca entrava pela abertura, junto a vozes que conversavam entre si, sem nenhum pudor de esconder o que diziam. As mesmas duas que entregaram a marreta, passaram um revólver para seu líder.
Irmão agradeceu e escondeu a arma na parte traseira da calça. Saiu primeiro com a brutamonte logo em sua cola. Ver o choque do grupo que o esperava, ao ver sua irmã, era sempre algo impagável.
Homens e mulheres com pinturas em formato de linhas pela pele os aguardavam. Todos com cabelos coloridos de vermelho. Mas o que realmente chamava a atenção eram as hienas, grandes como cavalos, e preso a suas costelas, uma sacola de couro com dardos de madeira.
Por um instante, Ozy teve recordações indesejadas, com o corpo de Gessica estirado sem vida, mas varreu tudo para o lado, precisava daquelas pessoas.
— Chegou cedo, Israel. – Cumprimentou o Grande Irmão.
Israel era o único ainda montado, e ao descer, deixou explícito seus músculos cobertos pela pintura. Diferente do resto do grupo, ele tinha a cabeça raspada. Grande Irmão teve que se segurar para não rir. O homem tentou intimidá-lo, ficando sobre o animal. Eram uma tribo em que somente a força importava e o seu líder era a prova disso.
— Vamos ao que interessa – respondeu Israel.
— Direto ao assunto! Prefiro assim.
— Por que quer nos contratar? – indagou o homem, que não tirava os olhos da marreta de Irmãzinha.
— Corvos. – Vendo a movimentação no grupo, Grande Irmão tratou de complementar: – Eles estão se intrometendo demais em meu negócio.
— Mexer com Corvos é perigoso – retrucou o homem, inseguro.
Tal atitude deixou Grande Irmão perplexo por um instante. Não esperava muito deles, mas conhecia muito bem aquele tipo de gente. Era somente atiçar sua ganância.
— Quantas moedas vai ser? – perguntou.
— Não precisamos de moedas – respondeu Israel, rindo.
— Já esperava por essa resposta, mas não custava nada tentar – disse, sinalizando para que um senhor trouxesse a ele a arma que lançava pregos. – Que tal mil destas, então?
Israel olhou para o objeto, desconfiado. Tentou segurá-la, mas Grande Irmão a trouxe para si.
— Esta aqui é uma arma muito mais perigosa que seus dardos. Deixem-me mostrar.
Mirou a arma para cima e acionou o gatilho. O estouro deixou tanto animais quanto homens assustados. Grande Irmão se deliciou ao ver suas reações, abaixou a arma que esfumaçava pela ponta e a entregou para Israel.
— Mil destas? – indagou o homem, que a analisava.
— Mil. – Ele sabia que havia conseguido o que desejava. – Se não quiserem, posso conseguir outro grupo.
— Não. – Cortou Israel, um pouco desesperado. – Iremos dar um jeito nestes Corvos! Só contar-nos os detalhes.
— Fico feliz em saber. Minhas fontes disseram que estavam indo em direção à Cova 30, preciso que dê um jeito neles. É bem simples.
— Quantos são?
— Eram três, mas agora podem estar em grande número. Se achar que não dará conta, posso conseguir outro grupo.
— Já disse que vamos fazer. – Cortou-o rispidamente. – Traremos os anéis para provar que o trabalho foi feito.
— Por mim, tudo bem. – Uma ideia veio em sua mente. – Vou mandar três pessoas com vocês. – Não esperou uma resposta. – Irmã, me traga os seus bichinhos e o saco de pó.
— Mas eles são meus! – protestou, indignada.
— Depois do que acontecer, eu te garanto um monte de bichinhos.
— Promete?
— Claro! – E foi sincero.
Irmãzinha entrou e foi em direção à jaula, deixando-o sozinho com o grupo que analisava a arma. Grande Irmão sentia que seu antigo eu, não reconheceria o que havia se tornado. O que o mundo o fez se tornar.


CorvosOnde histórias criam vida. Descubra agora