Capítulo 32

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Toda a cidade parou para ver os Corvos. Naomi não fazia ideia de quantas pessoas viviam na Cova até aquele momento. A multidão os observava de forma cautelosa.
O grupo saiu do Ninho com Sandy na liderança, indo na direção onde alguns dos novatos foram mais cedo preparar os veículos. A energia do dia anterior mudara drasticamente, o que agradou a Naomi. Muitos dos que os assistiam, não faziam ideia do que acontecia na cidade. Fizeram um ótimo trabalho escondendo a existência da S.L.
Naomi passou onde um largo grupo de carroções da caravana esteve havia algumas horas, sobrando somente marcas de onde as rodas ficavam e dejetos dos animais. Os Ninhos eram lugares em que a fofoca ocorria o tempo todo, e já era de conhecimento geral o que Grande Irmão havia feito dos membros que desaparecem, escravos, deixando a motivação cada vez mais elevada.
Diversos Corvos usavam as armas padrões, sendo elas a espada curta e uma faca comum ou um par de facas, mas existiam aqueles que igual a Naomi, empunhavam armas diferentes. Sandy mesmo tinha amarrada em sua cintura uma cimitarra presa na diagonal. O ferro tinha uma curvatura semelhante à unha de uma ave de rapina. Um homem baixo e com braços roliços pelos músculos, levava preso nas costas uma maça cheia de espinhos. Naomi era igual com sua katana, recebendo olhares curiosos o tempo todo na arma presa às costas.
— Posso te falar uma coisa? – indagou Gabriel, aproximando-se.
— Não vejo como te impedir – resmungou ela.
— Estou ansioso – disse, ignorando completamente o comentário. – Fazia tempo que eu não sentia tanta vontade de atirar em alguém.
— Lembro que disse a mesma coisa pelo menos cinco dúzias de vezes. – Naomi o cortou com um sorriso arteiro.
— Completamente diferente.
— Em qual aspecto?
— Minha motivação – respondeu, batendo seu ombro no da parceira.
A palavra motivação a fez buscar Livya, que estava a poucos metros conversando com um Corvo jovem. Haviam sido apresentados por Ana no dia anterior e fizeram amizade rápido, o que deixou Naomi um pouco enciumada.
Uma rajada de vento fez os galhos da árvore central da Cova se sacudirem e folhas voaram junto ao cheiro de grama. Gabriel praguejou baixo, esfregando os olhos com as costas das mãos.
— Cisco de merda – falou para si.
O grupo de Corvos já havia se afastado bastante do centro da cidade, sendo possível ver os curiosos que observavam à distância. Sandy diminuiu o passo para ficar emparelhada com a dupla e falou:
— Me deixei levar pela empolgação ontem. – E viu Naomi concordar com a cabeça. – E me esqueci completamente de falar sobre os nossos que foram pegos.
— Eles já sabem – constatou Gabriel. – Fofoca é uma coisa louca.
— Sim – retrucou a loira, fazendo uma careta de desgosto. – Devia ter sido eu a dar a notícia, só que alguém acabou dando com a língua nos dentes. – Seu olhar foi acusador em direção a Gabriel.
Fazendo-se de vítima, o rapaz abriu a boca fingindo indignação, mas não lembrava de ter comentado sobre o fato com ninguém, guardando as especulações de quem o teria feito.
O som de veículos junto ao vulto deles aumentava no horizonte. Naomi conseguiu reconhecer o carro dela perto de outros, e igual ao seu, todos estavam remendados e com peças que claramente eram de outros modelos. Doze veículos estavam estacionados próximo do grupo, que aguardou os novatos acabarem de manobrar.
Gabriel olhou uma garota da idade de Livya saindo de seu veículo depois de se dar por satisfeita com o modo que estacionou, e passou por ele acenando positivamente. Todos os doze novatos fizeram um grupo, vendo seus veteranos tomarem seus lugares nos carros.
Naomi estava perto no momento que Sandy falou com eles. Com esforço, conseguiu escutar o que a outra falava baixo:
— Deixo a cidade com vocês, não me decepcionem.
O grupo aquiesceu positivamente para a líder, voltando ao Ninho logo na sequência. Naomi voltou a atenção ao carro, vendo que Gabriel e Livya estavam no banco traseiro, sobrando a ela o volante.
— Ei, Naomi! – gritou Gabriel. – Olha só quem deu o ar da graça! – Apontou para Livya.
— Para com isso – Naomi o censurou, tomando o volante em mãos.
— Eu não sumi – falou Livya, vermelha com a exposição.
— Claro que não – respondeu Gabriel, que se colocou entre os bancos da frente, ficando ao lado de Naomi. – Sandy está saindo, é melhor acompanhar ela. Eu não faço ideia de onde é a antiga Cova 50.
A motorista concordou, também não saberia chegar. E assim, os carros saem quase ao mesmo tempo. Não seguiam uma formação, somente eram guiados por Sandy.
— Vi o estado dos usuários – comentou Livya, ainda um pouco vermelha.
Gabriel voltou a se sentar completamente no banco traseiro, mastigando uma folha de grama que a jovem não fazia ideia de onde ele havia conseguido. Naomi, por sua vez, se remexeu, incomodada.
— E então? – perguntou o rapaz.
— Não fiquei muito tempo, Gabriel, mas posso dizer que a situação está pior do que em nossa Cova.
— Tem certeza? – o rapaz voltou a falar.
— Crianças, tinha crianças entre os usuários.
Naomi sentiu um repentino peso contra o peito diante da informação. Não conseguiu ver como Gabriel reagiu, mas conhecia o bastante para saber que ele ficou desconfortável.
Ficaram em silêncio seguindo junto aos outros a estrada rente ao lago que estava cheio de banhistas aproveitando o calor do dia para se refrescarem. Alguns barcos se aventuravam mais para o centro dele, atrás de pescaria.
O dia foi passando de forma monótona. Livya olhava pela janela, vendo outros carros em que os tripulantes conversavam entre si ou dormiam. Olhou para frente e viu que Naomi dirigia, perdida em algum pensamento. O rapaz a seu lado analisava a pedra de amolar lascada, fazendo o pedaço negro de rocha dançar pelos dedos.
As árvores escassas aumentavam em quantidade a cada minuto que passava, enquanto desbravavam o início de uma floresta. Colinas e morros eram frequentes. Gabriel olhou fixamente para um vale estreito a poucos quilômetros da comitiva. Se fosse para se preparar para uma emboscada seria ali, porque além de dar a vantagem da altura, o espaço obrigaria somente um carro entrar por vez, formando assim uma fila. Seria um alvo fácil para ataques vindos de cima.
Não foi o único que notou. Vários veículos diminuíram a velocidade percorrendo o lugar atrás de algo errado. Alguns chegaram a colocar metade do corpo pela janela. Foi então que Sandy desacelerou na frente, fazendo todos seguirem seu exemplo até finalmente estacionarem a cem metros do vale.
A mulher saiu do carro sendo seguida por muitos que se aproximavam para saber o motivo da parada. Naomi foi um deles, se juntou ao pequeno círculo de Corvos.
Sandy olhava nervosa para a depressão na terra, passeando os dedos no cabo de sua arma o tempo todo. Foi então que ela falou, sem se virar:
— Vi alguma coisa ali. – Usou o queixo para mostrar a direção.
Quase em consenso, os Corvos levaram as mãos em direção às armas. Gabriel, vendo a movimentação do grupo, saiu no mesmo momento do carro, acompanhado por Livya.
— Se preparem – murmurou Sandy.
Antes que qualquer um deles pudesse indagar o porquê, um dardo voou por cima de uma das paredes do vale, tendo como alvo o ventre de uma mulher ao lado de Sandy, mas a líder dos Corvos estava preparada, e simplesmente, apertando os dedos contra a empunhadura de sua cimitarra, fez um arco acertando o pedaço de madeira ao meio de seu voo, impedindo o golpe.
Naomi puxou sua espada para fora da bainha na mesma hora, vendo o braço de Sandy se sacudir pelo impacto. Mas não teve tempo de se importar com ela quando o som de risos e gritos encheu a mata. Pessoas montadas sobre hienas saíam por entre as árvores, vindas de todas as direções, fazendo dardos caírem sobre os Corvos.
Disparos começaram de imediato como resposta ao ataque. Naomi, que não possuía arma de fogo, se abaixou, ficando longe da linha do fogo cruzado e vendo os animais juntos aos que montavam serem alvejados.
Hienas galgaram para o meio dos carros, sacudindo toda a lataria de alguns ao se chocarem contra eles. Naomi viu um Corvo sozinho lutando bravamente contra dois dos adversários, aguentando bem, mesmo que usando somente duas facas. Então correu em seu auxílio.
Segurando a katana com ambas as mãos, ela correu vendo os músculos potentes da perna da hiena se contraindo e relaxando enquanto a pessoa sob ela estocava com o dardo contra o homem que sangrava pelo braço direito.
Ao ficar a par do animal, Naomi rodou o corpo junto à arma para dar mais potência a seu golpe que acertou a coxa da hiena. Ela sentiu a resistência da pele dura contra o corte da katana e então o ferro deslizou sem dificuldades. Ao atingir o músculo, sentiu o ataque raspando no osso, causando um longo arrepio em seu pescoço.
Sangue borrifou contra o ar e vazou torrencialmente do golpe. A hiena urrou de dor, virando a cabeça no mesmo instante, mordendo em direção à agressora. O movimento da criatura foi tão súbito que fez o homem montado nela, sacudir na sela.
A Corva pulou para trás, escapando das mandíbulas que se fecharam soltando um som oco. De canto, o outro homem que era atacado se viu livre de um dos agressores, conseguindo focar totalmente na hiena diante de si. Naomi seguiu o exemplo dele e aproveitando que o animal mancava, contra-atacou assim que uma nova mordida se dirigiu a ela.
Respirou fundo avançando com a ponta da katana, estocou com ambas as mãos e acertou a parte interna da boca do animal, transpassando-a. Todo o corpo da hiena amoleceu quase arrancando a arma de Naomi, que puxou a tempo de ver um dardo vindo em direção a seu peito.
O homem sob o animal morto havia conseguido recuperar o equilíbrio, perdendo-o logo em seguida com a queda de sua montaria. Aproveitando-se disso, Naomi cortou o ar em diagonal e acertou a lateral do tronco do homem. Diferente do couro grosso da hiena, desta vez a lâmina deslizou sem dificuldades.
Mas o caos reinava e não havia tempo para que ela respirasse. Conseguiu reagir a tempo e ver dois dardos voando em sua direção. Por puro reflexo, voltou as mãos à empunhadura da arma ensanguentada, acertando-o em pleno ar. Todo seu corpo vibrou com o impacto e a jogou no chão, de bunda, mas isso salvou sua vida. Ela viu o outro ataque passar no ar a poucos centímetros de si, quando o rosnado às suas costas fez seu peito gelar.
Uma hiena sem montaria pulou em direção à Corva, mas ela teve tempo de se jogar para frente desviando. Rodou o corpo e fez um corte em diagonal no ar, acertando o olho do animal
A hiena choramingou com o olho rasgado e fugiu em direção às árvores. Naomi estava novamente de pé, esperando um novo ataque. Teve tempo de ver Gabriel segurando a espada curta em uma mão e na outra a Magnum, com a ponta esfumaçando.
O grito a fez voltar a si. Estava de frente a um homem com o cabelo raspado e vermelho, montado em um animal com um buraco de bala no ombro musculoso. O adversário parecia convicto da morte dela ao estocar sua arma. Naomi pegou o cabo do dardo usando somente uma mão e puxando contra si.
Aquele movimento pegou o homem despreparado. Ele caiu pesadamente na grama e tentou levantar quando o próprio dardo perfurou sua nuca. Naomi, que acabara de executar o homem, soltou o cabo de madeira preso ao chão, jogando-se para o lado enquanto a pata do animal varreu o espaço onde estava sua cabeça havia alguns instantes.
Aproximou-se com um jogo de pés e ficou ao lado da cabeça da criatura. Enfiou sua arma no pescoço dela, usando o peso para que a lâmina adentrasse. A hiena tentou lutar mesmo com a katana transpassando, mas foi em vão.
Naomi soltou a arma, respirando com dificuldade. Suor escorria por todo o corpo, grudando os cabelos curtos em seu rosto, as mãos estavam vermelhas de sangue igual à empunhadura da arma.
Viu uma mulher correndo em direção a Ana, que lutava contra um dos cães e não via o novo agressor. Naomi puxou o dardo do pescoço do homem, espirrando sangue ao sair, e segurando no meio da arma, lançou o pedaço de madeira que acertou a lateral do outro, jogando-o no chão.
— Sou eu, Amanda! – gritou uma mulher, desesperada.
Naomi que mal recuperara a arma, voltou-se ao grito. Um dos Corvos que foram drogados se aproximou da mulher que continuava a gritar, segurando um bastão de ferro.
— Não me faça te atacar! – Levantou a espada curta para se defender. – Como não se lembra de mim, Amanda?
Subitamente Amanda avançou sobre a outra, mirando o bastão em direção à fronte da mulher. Vendo tudo, Naomi consegue jogar a tempo uma das facas de arremesso, que voou longe ao ser atingida com o bastão. Amanda havia parado no meio do ataque à outra para se defender e agora tinha sua atenção voltada a Naomi.
— Eu cuido dela! – gritou para a mulher.
Não teve tempo de resposta, pois Amanda estava sobre ela, descendo seu bastão, que era rechaçado pela katana. Naomi conseguia acompanhar os ataques, mas o cansaço cobrava o preço, diminuindo a força.
A cada encontro das armas, Naomi se sentia mais fraca. O bastão subiu em direção a seu queixo, passando batido no ar quando ela se esquivou e estocou, mirando o interno da outra. Fazendo malabarismo com o pedaço de ferro, Amanda rebateu a estocada.
Naomi precisou dar alguns passos para trás a fim de recuperar o equilíbrio. Trincou os dentes, de raiva. Segurava a arma com ambas as mãos a ponto de deixar os dedos brancos e avançou com o intuito de terminar. Novamente o bastão veio com violência na direção do pescoço da Corva, que se abaixou sentindo o vento feito pelo ataque.
Sem perder tempo, esticou todo o corpo de uma única vez e acertou o ventre de Amanda, fazendo com que a arma entrasse até a metade nas tripas dela. Naomi estava prestes a puxar a arma, mas sentiu o braço direito dormente e veio a dor.
Mesmo com o ventre perfurado, Amanda acertou com a ponta de sua arma o braço de Naomi, quebrando-o instantaneamente.
Com os olhos cheios de lágrimas, a Corva suprimiu um grito de dor, colando o membro fraturado contra si, e usando somente a mão boa, abriu a barriga de Amanda com um movimento lateral da arma, fazendo sangue e fezes caírem no chão.
Naomi sentiu o braço inchar junto a ondas de dor. Mesmo com a visão um pouco embaçada, avançou sobre a outra que havia caído de joelhos com as tripas balançando para fora. Foi então que Amanda se levantou, jogando o corpo contra o dela.
A jovem sentiu uma dor excruciante abaixo do seio direito. Olhou para baixo e viu que Amanda tinha a apunhalado com uma faca curta. O sangue jorrou no mesmo instante. Distanciou-se, zonza pela perda de sangue. A imagem de Amanda em pé com as tripas para fora e segurando uma faca ensanguentada, ficou marcada na mente dela.
Sua adversária veio prestes a acabar o serviço, mas seu joelho esquerdo cedeu. Uma faca de arremesso estava cravada profundamente na perna dela. Naomi viu que a mulher que tentou salvar acabou salvando-a quando acertou sua agressora por trás. Recolhendo todas as forças que ainda tinha e lutando contra a dor, desferiu um jogo de cima para baixo e acertou o crânio de Amanda. O som do osso quebrando foi nauseante.
Viu o corpo da adversária caindo em convulsões. Toda sua vista escureceu, mas foi capaz de ver os atacantes fugindo, e então desmaiou.


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