Capítulo 20

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Haviam mudado de lugar, pois acabaram sendo vistos no fim de todo incidente. Livya estava deitada no banco traseiro, sua febre estava mais baixa, e para compensar sua melhora, sentia uma dor de cabeça terrível. O resultado de ter utilizado a droga, afetava-lhe em ondas.
Escolheram um lugar semelhante ao primeiro, com a diferença de ser mais próximo dos restos do metrô. Estacionaram o carro atrás de entulhos altos o suficiente para encobri-lo. Exceto a jovem deitada, o resto do grupo estava espalhado pelo lado de fora.
Sentado no capô, Gabriel levava pontos de Naomi, acima da sobrancelha. A Corva pegou o pequeno kit de linhas e agulhas no porta-luvas e realizou o procedimento com habilidade.
Gabriel sentia a agulha entrar em sua carne. Não chegava a ser uma dor terrível, mas a sensação desagradável continuava. Tirando ele, mais nenhum dos seus colegas chegou a sofrer ferimentos no desmoronamento.
— Aqui – falou Michel oferecendo um potinho que tirou do cinto. – Pomada de babosa. Deve ajudar um pouco.
— Obrigada – agradeceu a Naomi, aceitando de bom grado o frasco. – Só mais um ponto e... certinho.
Cortando a linha com a faca, Naomi observou o seu trabalho mais algumas vezes, pegando o queixo do colega e virando a cabeça dele de um lado ao outro. Ao se dar por satisfeita, retirou o pote do frasco e enfiou um dedo dentro.
— Eu mesmo faço isso – protestou Gabriel.
— Quieto – mandou Naomi, esfregando a pomada sobre os pontos.
Bia se sentou contra os restos de parede, sentiu todo o corpo dolorido e muito cansaço. Viu as olheiras fundas nos olhos de Samuel e de todos os outros colegas.
Naomi devolveu a pomada para Michel, agradecendo mais uma vez. Abriu a porta do motorista e se sentou pesadamente na poltrona. Escutou a respiração tranquila de Livya, que conseguiu dormir, enfim. Tirou sua arma da bainha, vendo o estrago. O fio estava um pouco comprometido em algumas partes, mas nada que chegaria a atrapalhar se precisasse entrar em combate mais uma vez. Corpos de aracnídeos prejudicam menos o corte do que um humano.
A pomada amenizou bastante a dor, dando ânimo para Gabriel pegar sua arma e recarregá-la tranquilamente. Virou-se para Michel:
— Por que não usou essa pomada em Livya?
— Ela mesma usou a dela – respondeu o outro, que mantinha o olhar perdido no horizonte. – Usou toda.
— Entendi – disse, pegando a pedra de amolar e jogando para a parceira. – Pode usar.
— Acabamos com a fonte de matéria-prima – constatou Naomi, enquanto passava a pedra na lâmina. – Isso deve atrasar um pouco as coisas para eles.
— Por um tempo – resmungou Samuel. – Mas não podemos esquecer que eles devem ter um estoque da droga, e temos outra pergunta também.
— Onde fazem a S.L. – complementou Michel. – Não duvido que seja nesta área. Eles não iriam viajar quilômetros arriscando perder o veneno.
— Faz sentido – concordou Bia, ainda sentada. – Vamos atrás deles?
Ficaram em silêncio. Não tinham dúvidas de que atrasaram as coisas, mas não sabiam por quanto tempo, afinal, não mataram todas as aranhas, e para piorar, eles haviam sido vistos. Logo seriam caçados, mas o grupo não era a caça, mas sim, os caçadores.
— Precisamos descansar antes disso – afirmou Michel.
— E depois? – indagou Gabriel, com o olhar cansado.
— Samuel – prosseguiu Michel. – Tudo bem se Gabriel e Bia dormissem primeiro? Eles foram os que fizeram mais coisas. – Viu o outro concordando e continuou: – Naomi, você fica de guarda, e eu junto do Samuel, vamos achar algo para comer e tentar encontrar algum rastro dos veículos.
— Não vai ser difícil – falou Samuel. – Mal ventou, então as marcas de pneus vão estar bem visíveis.
— Fico de guarda, sim. – disse Naomi, indiferente. – Mas e quando será a nossa vez de descansar?
Michel olhou para o céu, o sol já começava a descer. Eles não tinham o privilégio do tempo, e o cansaço somente atrapalhava, além de haver dois feridos.
— São um pouco mais de três horas da tarde – respondeu a outra. – Em quatro a cinco horas voltamos, deve ser tempo o bastante para os três descansarem, e daí teremos nossas horas.
— Se acabarmos achando alguma coisa – emendou Samuel – podemos fazer nosso movimento ainda hoje.
Gabriel foi até um ponto onde uma grama rala nascia. Deitando-se, sentiu o peso do cansaço, apoiou a cabeça com as mãos e disse quase para si mesmo, enquanto colocava uma folha na boca:
— Umas quatro horinhas de sono já ajudam.
— Já que eu vou ficar acordada mesmo – disse Naomi. – Alguém tem alguma arma para amolar?
Bia se mexeu com pouca vontade, desembainhando sua espada curta, indo até a colega e passando a arma para as mãos da outra.
— Aconteceu um incidente mais cedo no metrô – falou Bia, sorrindo de forma arteira para Gabriel, que fechou a cara. – Seria bom amolar um pouquinho.
Naomi resolveu nem perguntar o que aconteceu mais cedo, pois as marcas no ferro eram iguais às da sua arma, e não queria mais pensar em aranhas por um bom tempo.
Em seguida, Michel se aproximou com a faca que usou para abrir o pedaço do barril. O estrago nela era bem maior do que a simples perda de corte, toda a borda do metal que tinha como intenção cortar estava com pedaços minúsculos quebrados e a ponta arredondada por ter sido forçada ao extremo contra uma superfície dura.
— Não sei se vou conseguir fazer muita coisa com uma pedra de amolar – falou a jovem enquanto observava mais de perto a arma.
— Qualquer coisa que conseguir, vai deixar melhor do que está – comentou Michel, um pouco envergonhado.
Enquanto Naomi continuava a cuidar de sua katana, e Gabriel e Bia se aconchegavam aos estranhos lugares que escolheram para dormir, a dupla Michel e Samuel saíram deixando o acampamento para trás.
Voltar à guarita foi tarefa fácil. Atravessaram algumas ruas desoladas e suas ruínas. Ao chegarem, a visão dos corpos negros cheios de pernas era algo extremamente desagradável.
— As duas fizeram um estrago – comentou Samuel.
Caminharam até onde as marcas no chão ficavam evidentes. O solo estava repleto de marcas de veículos e pegadas que seguiam para uma mesma direção: a estrada principal que cortava bem ao centro das ruínas.
Enfiaram-se no meio dos destroços, caso precisassem se esconder, seguindo o caminho. A cidade ficava com menos destroços e mais construções em melhor estado para o seu centro. Era como se somente as bordas tivessem sido uma área de guerra, e o centro, um refúgio dos que não queriam compactuar com aquilo.
A vida animal se espalhava em abundância por todos os cantos, com pássaros que usavam as antigas construções para fazerem seus ninhos, os coelhos com suas tocas e um grande número de insetos.
Plantas trepadeiras se arrastavam por quase metade das ruas e subiam em casas, dominando completamente as construções. De longe, faziam lembrar pequenos morros com grama.
Samuel sentiu o cheiro de plantas e flores, viu as abelhas voarem de um lado ao outro coletando o mel; o lugar cheirava à vida. Continuaram um pouco afastados da rua principal por segurança, passando diante de uma casa. Por um momento, o Corvo se assustou quando uma cabeça apareceu na janela, mas em seguida soltou o ar pelo nariz, de forma divertida. Do espaço onde ficava uma janela, havia agora a cabeça de uma raposa que espiava a dupla, de forma curiosa. Parecia ser a dona do lugar, e igual a uma pessoa curiosa, manteve o olhar neles quando saíram pela porta, para continuar mantendo-os em vista.
Pequenas árvores se aventuravam a nascer no local, não se importando com o lugar. Desde do meio das vielas ou até nos restos de uma casa desmoronada. Mas a que chamava a atenção era um pé de amora que crescia no meio da pista.
As frutinhas roxas chegavam a reluzir contra o sol, algumas redondas de tão gordas. Michel se aproximou e enfiou diversas na boca.
— Devemos levar algumas para eles?
— Se arrumarmos um jeito das amoras não serem esmagarem ou caírem no caminho, eu não me importo – respondeu Samuel, com a boca cheia.
Deixaram a árvore para trás, com as pontas de seus dedos roxas, voltando a atenção para os rastros no chão, que finalmente haviam mudado de direção. Saindo do caminho principal, as marcas viravam para a rua da direita, em um cruzamento onde carcaças de caminhões pareciam fechar o caminho, como uma parede.
— Alguma coisa deve ter acontecido neste lugar – sussurrou Michel, enquanto pegava a nova direção. – Não é estranho deixarem os caminhões nesta posição?
— Deve ter ocorrido alguma das batalhas da Terceira Guerra dos Antigos neste lugar – resmungou Samuel de volta. – Talvez fosse algum centro comercial importante.
Michel concordou com a suposição do colega, mas sua atenção foi roubada por um beija-flor que voava de forma frenética entre as abelhas, bebericando das flores que nasciam na ponta de um poste coberto por trepadeiras.
O ronco de motores espantou todos os bichos, deixando a dupla, no mesmo momento, em estado de alerta. Esconderam-se logo atrás de uma moita cheia de flores brancas.
Escutaram o veículo se aproximar. Samuel se deitou de barriga contra o chão, arrastando-se um pouco para dentro do arbusto e indo até um ponto para conseguir enxergar algo do outro lado. A um quarteirão, uma caminhonete virou trazendo consigo uma nuvem de areia. O rapaz se espremeu mais para dentro dos galhos e prestou extrema atenção, assim que o carro passou diante dele.
Ficaram algum tempo ainda sem mexer nenhum músculo, somente esperando o som do motor abaixar. Samuel voltou o corpo e saiu do emaranhado de galhos. Virando-se para o colega, com os pedaços de folhas no cabelo, disse sério:
— Consegui ver um dos homens de relance e estava claramente irritado com algo. Já deve imaginar o motivo, né? – Não chegou a ser uma pergunta.
Michel somente concordou com a cabeça, mesmo não havendo necessidade. Notou algo. O barulho começou do nada, não veio aumentando devagar, somente começou. Estavam perto.
— Melhor dobrarmos nossa atenção – disse Michel ao colega.
Samuel concordou, pegando uma de suas facas de arremesso. Seguiram o caminho na posição padrão dos Corvos, que era em fila, e cada um tomava conta de um dos lados da rua, fazendo o possível para não entrarem em campo aberto.
Com o tempo, a vida nativa voltou para seus afazeres, deixando a dupla um pouco mais relaxada. Chegaram ao fim do quarteirão, com uma grande casa em estado de conservação razoável, e iniciaram a próxima curva.
— O que acha que ele vai fazer? – indagou uma voz que vinha de poucos metros à frente da dupla.
Michel sentiu o coração dar um pulo, alguém vinha da direção que estavam tomando. Conseguindo manter a respiração controlada, ele se moveu rapidamente para a abertura da casa, colocando-se contra a parede à esquerda da porta. Samuel fez o mesmo, estando na parede contrária.
— Ele vai dar um jeito, como sempre – respondeu uma segunda voz, só que dessa vez, feminina. – Corvos são sempre um estorvo.
— Nem me diga, e não é a primeira vez.
— Pois é, mas dessa vez eles passaram de todos os limites. O Grande Irmão vai matá-los pessoalmente.
No seu esconderijo, Michel ouviu tudo sentindo a nuca arrepiar. Olhou para o outro que compartilhava dos pensamentos. Mesmo tendo a vantagem do elemento surpresa, eliminar uma patrulha inimiga iria somente complicar as coisas. Permaneceu somente ouvindo, mas com as facas prontas.
— Talvez ele traga a Irmãzinha! – exclamou a voz feminina, cheia de animação.
— Se ela vier, não vai ter como eles fugirem, nem sendo Corvos.
A patrulha mudou o tópico da conversa para alguma fofoca interna boba, mas os dois escutaram algo que deixou um gosto amargo no estômago. Essa Irmãzinha parecia ser perigosa ou deveria ser, pelo que os outros falaram.
Não arriscaram sair da casa. Passaram por dentro dela e usaram a janela do outro lado para saírem, e se arrastaram à próxima usando as plantas. Um galpão ficava maior a cada casa ultrapassada. Pelo menos, para os dois, parecia um galpão, porque era somente o forro que dava para ser visto, à sua volta um muro contornava toda a estrutura.
Um portão amarelado que deslizava era a porta de entrada, mas havia um pequeno portão comum na lateral. Vários guardas andavam à volta dos muros, e sons de vozes e máquinas deixaram explícito que algo acontecia por detrás daquelas paredes. A S.L. era feita ali.
Contendo a empolgação, a dupla manteve a vigilância, esperando por novidades, mas tirando os guardas que eram sempre os mesmos, nada mudou. Michel, então, lembrou das quatro horas que havia combinado com Naomi e não havia muito mais o que fazer naquele lugar, pelo menos do lado de fora.
Sinalizando para Samuel, ambos iniciaram a volta e não tiveram nenhum problema, nem mesmo trombaram com outra patrulha. Ao atingirem a amoreira novamente, eles pararam exaltados.
— Achamos! – exclamou Michel.
— Sim! Mal acredito nisso! – Com o sorriso despontando da boca, Samuel continuou: – Parecia uma espécie de galpão.
— Exato, e a vigia é relativamente precária, dá para invadir com o nosso número atual.
— Quem será aquela Irmãzinha? – indagou Samuel, mudando de assunto repentinamente.
— Não importa agora. Se ela faz parte desse grupo, vamos acabar conhecendo-a, cedo ou tarde.
— Você está certo – sussurrou Samuel. – A noite hoje vai ser agitada.
Michel concordou. Começaram o caminho de volta, aproveitando o fim do dia.
O outro Corvo para de repente.
— Esquecemos de arrumar alguma coisa para eles comerem.
— Pode ser amoras? – perguntou Michel, que levou como resposta uma careta do outro.
Samuel iria dar uma de suas respostas mal-humoradas, quando algo chamou a atenção num canto perto do muro de uma antiga construção. Cavou algo com sua faca e levantou o achado, satisfeito, para o outro.
— Bom olho – reconheceu Michel.
Seguiram o que faltava do caminho, em silêncio, pois o cansaço enfim recaiu sobre eles. A empolgação dava espaço à falta de energia, mas logo viram o esconderijo do grupo e entraram triunfantes.
Naomi olhou para eles no mesmo momento, mas relaxou ao ver a dupla. Tanto Gabriel quanto Bia ainda dormiam no mesmo local, e Livya conversava animadamente com a colega.
— Por favor, me digam que trouxeram algo para comer? – questionou Livya.
— Sim – disse Samuel, levantando diversas batatas ainda presas às plantas. – E mais algumas coisas interessantes também.


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