Capítulo 26

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Sentada sobre o capô, Livya tentava com todas as forças não prestar atenção em Naomi costurando seu braço. A sensação da agulha entrando e saindo era angustiante.
Não falaram nada durante todo o caminho, era muita informação para digerir. A Corva trabalhava rápido no braço da companheira, passando da metade.
— Você é boa nisso – comentou Livya.
— O tanto que faço isso – respondeu, sem tirar os olhos do que fazia. – A prática leva à perfeição.
Hylari segurava a espingarda enquanto andava de um lado ao outro. A preocupação dela ficava ainda mais óbvia pelos olhos aumentados nas grossas lentes dos óculos. Checava a entrada o tempo todo, esperando por Gabriel. No tempo em que chegaram até aquele momento, cinco homens brutamontes vieram falar com ela, que passou ordens, fazendo-os correr pela cidade para cumpri-las.
Passos apressados fizeram as três olharem para a entrada. Até mesmo Naomi parou um dos pontos no meio, para olhar. Gabriel entrou arquejando da corrida que fez para chegar. Todas ficaram na expectativa de saber o que ele achou.
Apoiando uma das mãos contra a parede, o rapaz abriu a outra e revelou um pequeno círculo negro. Naomi estreitou os olhos, mas não precisava chegar perto para saber o que era.
— Entendo – murmurou Hylari, parando de andar.
— Mas não é por que usam o anel, que necessariamente são Corvos – anunciou Livya. – Podem ter simplesmente pegado de algum corpo.
— Pensei nisso também – começou Naomi, voltando atenção ao que fazia. – Mas a forma com que lutava não era de alguém sem nenhum treinamento.
— A Corva está certa – emendou Hylari. – Vi como ficou meu estabelecimento. Um amador não teria atirado de forma tão letal ou simplesmente aguentado combater um de vocês por tanto tempo.
Gabriel se sentiu obrigado a concordar. A mulher que enfrentara mais cedo tinha o estilo parecido com o seu. Pelo que viu no rosto de Naomi, ela percebeu.
— Vieram atrás da gente – concluiu Naomi.
— Sim – concordou o rapaz.
Sobre isso, nenhuma dúvida ficou em nenhum deles. Os ataques foram direcionados e focados em cada um. Infelizmente, houve casualidades, mas o alvo principal era o trio.
— Isso só levanta ainda mais dúvidas – começou Livya, que agradeceu à companheira por ter terminado os pontos. – Se eles vieram a mando do Grande Irmão, como esses Corvos caíram na influência dele?
Um silêncio desagradável pairou no grupo. Não tinham nenhuma prova, somente hipóteses, e todas levavam aos traficantes. Hylari balançava de um pé para o outro, parecendo lembrar de alguma coisa, mas segurando a informação para si.
— Fala logo o que você sabe – falou Naomi, de forma áspera. Ela havia percebido a estranha reação da outra.
— Tenho algumas novas informações que chegaram junto a uma caravana.
— E não ia dizer nada? – indagou Gabriel, desacreditado.
— Quieto – mandou Naomi. – Deixe-a falar.
— Existe uma Cova que está sofrendo muito com essa droga. Acredito ter mencionado. De qualquer maneira, muitos Corvos acabaram desaparecendo durante suas investigações. – A velha se sentou em uma das carroças, parecendo muito mais velha do que era. – Acredito que, pelo menos, os dois mais velhos também perceberam uma coisa sobre os corpos.
Tanto Naomi quanto Gabriel aquiesceram entre si, mas Livya ficou perdida esperando por alguma explicação, que acabou vindo de Naomi.
— Todos eram dependentes químicos.
— O quê? – indagou Livya, entendendo devagar, sentindo um frio sinistro no peito. – Eles foram drogados?
— Isso é só uma ideia, Livya – continuou Naomi. – Mas acredito que sim, eram motivados a fazer tudo que Grande Irmão mandava para conseguirem mais droga, e devem ter sido capturados pela quantidade insana de membros da quadrilha. Mesmo sendo Corvos, é impossível enfrentar aquela cutia.
A jovem só não caiu, pois já estava sentada, mas a lembrança das pessoas escondidas na Vala veio em sua mente. Era o mesmo cheiro.
— Para deixar alguém chegar a tal estado ... – murmurou Gabriel. – Grande Irmão deve ter usado de tudo.
Mesmo vivendo em um mundo destruído, que o tempo todo era reconstruído e em constante mudança, o rapaz achou que estava acostumado a todos os tipos de atrocidades, mas o ódio e a repulsa se intensificaram de forma absurda. Percebeu em Naomi o mesmo sentimento. Foram poucas vezes que a viu com ódio, sendo esta a mais intensa de todas.
— Qual Cova? – questionou Naomi.
— Quê? – indagou Hylari, perdida em pensamentos.
— A Cova que disse estar sofrendo essas baixas em Corvos – emendou Gabriel.
— Trinta, Cova 30. – Levantou uma sobrancelha. – Irão lá?
— Sim – respondeu Naomi, de forma cortante. – Ela é mais perto do que a nossa, e para termos alguma chance, precisamos de mais pessoas.
— Tem mais – continuou a velha. – Parece que os Corvos estão preparando algum tipo de ataque. Algum desses grupos que enviaram deve ter descoberto a localização.
— Precisamos ir então! – falou Naomi, apressada, entrando no banco do motorista.
Os outros dois a seguiram. Gabriel atrás para conseguir esticar um pouco suas costelas e a jovem na frente. Logo, o sacudir do motor fazia todo o veículo tremer.
— Por que está ajudando a gente de graça? – inquiriu Gabriel, olhando para Hylari.
— Percebi hoje que é melhor estar ao lado de vocês do que contra.
— Ótimo que percebeu – disse Naomi, sem olhar para Hylari.
De supetão, o carro disparou de volta para o deserto, deixando a mulher pequena segurando uma espingarda para trás. Livya, meio perdida com a rápida mudança nos acontecimentos, somente ficou olhando as areias passarem. Em um momento descansaria um pouco na cidade, no outro, lutava pelas suas vidas, e agora ia em direção a uma nova cova.
Isso sim é uma missão de estreia, pensou.
Gabriel tentava lembrar por que a Cova 30 fez lembranças virem à sua mente. Sentia que já ouvira falar dela antes, mas estava exausto, desistindo dessa busca mental por um momento.
— Abriu de novo – advertiu Naomi.
— O quê? – indagou o rapaz, com os olhos fechados.
— Seus pontos na costela. Não sei como os de seu olho não, mesmo levando aquela porta na cara.
O rapaz levantou a mão na hora para checar o corte no supercílio. Havia o esquecido totalmente, mas ficou satisfeito ao ver que estava do jeito que Naomi havia deixado. Agora, as costelas eram um problema mesmo. Não tinha tempo de deixá-las melhorar.
— Espero que a informação de Hylari esteja certa. – Gabriel mudou de assunto. – Se estiverem para atacar o Grande Irmão, quero participar.
— Não é o único – pontuou Livya, que alisou o cabo de sua arma, de forma inconsciente.
A motorista não falou nada, mas concordou com ambos. As areias começaram a se mesclar com grama. O que antes era somente marrom, agora eram manchas verdes, e a cada minuto, o verde crescia e dominava a areia.
O calor escaldante do deserto sumiu e deu espaço para uma brisa agradável. Sem perceber, o carro corria por uma planície verde com moitas e arbustos cheios de flores roxas. Árvores nasciam com alguma timidez, espaçadas umas das outras, e como se para compensar seus números, todas tinham, no mínimo, dez metros de altura.
Livya ficou boquiaberta com a mudança drástica. Ver cervos pastando e pássaros verdes e azuis cantando enquanto voavam, foi uma sensação estranha, mas muito boa.
— Você deve estar pensando – falou Gabriel que se sentou para admirar o lugar. – Como é possível essa mudança brusca, certo?
— Sim – respondeu a jovem, simplesmente.
— Radiação. – Vendo Livya levar a mão ao porta-luvas para pegar o contador de radiação, complementou rapidamente: – Calma, não tem nenhuma aqui. Aconteceu o seguinte: após a Terceira Guerra dos Antigos, o mundo ficou repleto por radiação e quase toda a humanidade se fechou no Bunker, certo? – Não esperou uma resposta. – Nesse meio tempo, a natureza mudou muito, e alguns lugares absorveram boa parte dela. Então o mundo é como um lençol feito de panos coloridos, vai encontrar de tudo.
— É incrível.
— Sim, e vai ver muitos outros lugares tão bonitos quanto esse. Claro que os desagradáveis também.
Livya pensou na Cova Trinta e Quatro e como o lugar era inferior àquele, em questão de beleza, mas não quis falar nada aos dois, quando uma questão veio à sua mente. Compartilhou:
— Essa é minha primeira missão como Corva e não recruta. – Ajeitou-se para deixar seu braço em uma posição melhor. – É normal as missões serem assim?
— Intensas? – indagou Naomi, que recebeu um aceno de cabeça da jovem como resposta. – Não. Para falar a verdade, essa é a primeira em que tanta coisa acontece.
— Sim – concordou Gabriel, voltando a fechar os olhos. – A única que chegou perto foi na época de recruta.
Livya percebeu o rosto da colega se contorcer diante do que o companheiro dissera. Veio a imagem de Naomi tremendo ao segurar a Magnum. Talvez algo terrível acontecera naquela época, que a deixou com alguma fobia. Não quis fazer perguntas sobre isso, pois lembrou do que Michel disse a ela: se Naomi quisesse compartilhar, ela o faria.
A lembrança do companheiro morto amargou a boca. Lutava para prestar atenção em outra coisa, e felizmente, algo no caminho ajudou nos seus esforços. Um lago de tamanho colossal, com pessoas que pescavam em pequenas canoas. Nas margens, uma estrada se iniciava e é para lá que Naomi dirigia.
O ar cheirava à água, e diferente do Oásis, não existia o barulho constante do rugido da cachoeira. O mesmo cheiro gostoso sem aquele detalhe, tornou-se o lugar preferido de Livya.
Mais à frente, um galpão com várias pessoas usando preto, crescia a cada metro percorrido pelo carro. As figuras ficaram alarmadas, correndo de um lado ao outro. Gabriel colocou a cabeça entre os bancos e disse:
— Era por isso que lembrei da Cova 30.
Naomi estava prestes a perguntar o porquê ao parceiro, mas não houve necessidade. Parando o veículo, viu os Corvos se aproximarem com a mão em suas armas. Levantou a mão mostrando o anel, relaxando-os um pouco.
— Vocês? – disse, surpresa, uma Corva baixinha, de cabelos negro.
— Lembra da gente, Ana? – gritou Gabriel, pela janela do carro.


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