Ana levou Livya para conhecer Luís, mas diferente da visitante achava a dupla acabou saindo do Ninho. A Cova era peculiar, com poucas pessoas andando de um lado ao outro. Não existiam as multidões que teriam em uma cidade.
Livya olhava para as guaritas com portas, eram todas uma ao lado da outra, lembrando bastante a formação das casas. Com construções escondidas debaixo do solo, as entradas pareciam muito com lápides.
Como as construções eram escondidas, não existiam as vielas, mas Livya prestou bastante atenção e percebeu que havia algo semelhante a um desenho do que seria a Cova, se seguisse as entradas para o subsolo. Por consequência dessa escolha, as árvores nasciam esparramadas pela planície acima, fazendo sombras grandes onde crianças brincavam, animadas.
Pessoas iam de uma porta à outra, sempre trazendo consigo alguma sacola e produtos. A jovem concluiu que não eram somente casas, mas todo o comércio.
— Que diferente – comentou.
— O quê? – indagou Ana curiosa.
— Esta cidade é diferente.
— Acha isso? – perguntou a outra enquanto passeava os olhos pelo lugar, não vendo nada de diferente. – Eu que achei estranho as Covas de fora, não tem por que as casas serem tão... – Ana procurava uma palavra para descrever o que sentia.
— Pra fora? – Livya ajudou.
— Exato! Por que serem para fora da terra? Assim fica muito mais difícil crimes e ações de criminosos.
Livya não teve como discordar. Pensando por esse lado, o lugar era extremamente seguro, além de que era fácil ver a aproximação de qualquer um no horizonte, sem nenhuma dificuldade.
— As patrulhas funcionam na superfície e em lugares com grande movimento? – questionou a jovem.
— Sim – respondeu Ana, indiferente. – Quer mesmo falar de patrulhas agora?
— Não – disse, sendo sincera. Então avistou algo vindo de longe.
Uma caravana se arrastava e era possível distinguir somente os animais e alguns dos carros. Livya ficou curiosa de imediato, olhando à volta e procurando um lugar em que as transações eram feitas.
Ana, percebendo o entusiasmo da outra, falou:
— Assim que conversarmos com Luís, mostro a você o nosso mercado principal. E depois a princesa pediu para que eu mostrasse o lugar com os usuários.
— Princesa? – indagou Livya, curiosa. Já ouvira aquela palavra em contos dos Antigos.
— Nossa líder. Ela parece uma princesa com aquela trança, igual a um conto dos Antigos, que falava sobre uma mulher de cabelos longos. Não sei direito também, só sei que ela odeia o apelido e por isso todos usam.
— Ela não tem nada disso! – comentou Livya.
— Não mesmo – respondeu Ana, risonha. Ela andou poucos passos e parou à frente de um alçapão. – Luís trabalha aqui para o som não nos atrapalhar, está vendo os canos?
Livya seguiu para onde a colega apontou, enxergando dois tubos pelos quais saíam fumaça.
— É por lá que sai toda a fumaça. Se não fosse por isso, ele provavelmente sufocaria.
Pegando com ambas as mãos uma argola presa da placa de ferro, Ana a levantou, soltando um gemido pela força utilizada. A areia deslizou por cima da superfície lisa e caiu torrencialmente pelas laterais enquanto a Corva escancarou a entrada.
Sons de ferro sendo lixado junto a um cheiro de ervas cozinhando, acertaram Livya quando as escadarias que desciam se mostraram diante de si. A escada era iluminada por LEDs que brilhavam de forma fosca, flanqueando a escada. Ao esticar o pescoço, ela viu a porta no fim.
Ana foi na frente, seguida de perto pela outra. Os degraus estavam um pouco escorregadios pela areia. A Corva abriu a porta, sem problemas, levando-as para o local de trabalho de Luís. Era uma sala larga, com espaço de sobra. Havia característica fogueira, pedra de amolar, ferro e diversos sacos de pólvora amontoados mais ao fundo.
Uma panela fervia as ervas e soltava uma fumaça que cheirava à canela e cravo. Ao lado da panela, uma prateleira completamente amontoada por frascos de vidro com conteúdos coloridos, e em sua maioria, mortais. Outra porta pequena no fundo estava fechada.
Luís mexia o líquido fervente com um longo pedaço de madeira quando as viu entrar. Seus cabelos encaracolados estavam grudados no pescoço por causa da umidade da panela. Parou o que fazia, deixando a colher para fora e indo em direção as duas.
Livya teve uma reação de estranheza inicial ao vê-lo com uma camisa branca sem mangas grudada ao corpo, mas resolveu não comentar.
— Bom dia, Ana. – Luís a cumprimentou, esticando uma das mãos à colega de Ninho, e se virou à outra. – Deve ser uma das convidadas?
— Sim – respondeu Livya, que retribuiu à mão estendida em sua direção. – Prazer, Livya.
— Sabe o que a princesa vai falar se te ver assim de novo – disse Ana, usando a cabeça para sinalizar as vestimentas do colega.
— Vocês não imaginam o calor que faz aqui dentro. – Cortou Luís, tirando algumas mechas de cabelo grudadas em sua testa. – Se querem que eu morra cozido é só falar, e ela não vai saber se não contarem. – Piscou de forma arteira à dupla.
— Só não esqueça de trocar antes de sair desta vez.
— Depois da última vez, te garanto – disse ele, com uma careta ao lembrar do acontecimento. – Isso não vai acontecer.
Luís foi então até sua forja e sentou-se na cadeira estofada, ficando de frente as duas. Analisou Livya sem nenhum pudor, deixando-a um pouco tímida.
— Chegaram ontem em mau estado – falou, apontando para um banco na parede. Vendo as duas irem se sentar, continua: – Pode dizer o que aconteceu?
Livya resumiu todos os acontecimentos, sendo breve ao que se referia aos da fábrica, pois não era uma lembrança que lhe fazia bem. Luís concordava o tempo todo enquanto ouvia, e Ana ficou chocada ao saber da morte brutal do companheiro da colega.
— Olhei os dois mais cedo – disse Luís, referindo-se a Gabriel e Naomi. – Tirando o corte nas costelas do rapaz, a outra estava sem ferimentos. Fiquei realmente impressionado na hora. Agora que sei mais da história, é quase um milagre. – Chamando-a para se aproximar, ele continua: – Gostaria de ver esse machucado em sua perna.
A jovem fica diante do outro e abaixa a calça sem nenhum pudor, ficando somente de calcinha. Observava Luís que focou no mesmo instante na longa cicatriz branca.
Ele ficou de joelhos e analisou o corte por um momento enquanto murmurava coisas para si mesmo. Passou a mão com força sobre a linha branca na pele morena da jovem, e perguntou:
— Dói?
— Não mais.
— Bom – disse quase que para si enquanto voltava a se sentar. – Pode colocar sua calça de volta. Tem mais algum lugar machucado, tirando o braço?
Livya fez que não com a cabeça e viu Luís se levantar quase de imediato indo em direção aos frascos. Começou a mexer na última prateleira enquanto murmurava sem parar coisas para si. Trocou de frascos diversas vezes, e em algumas ficou por instantes fitando o produto.
Depois de satisfeito, voltou para junto das outras levando consigo um único frasco com o conteúdo verde-alga. Sentou-se novamente, pegando o braço de Livya.
— Sua perna está bem. Não foi um trabalho de profissional, mas pelo que contou, se não fosse por essa atitude de Samuel, você estaria morta agora, ou no melhor dos casos, perderia a perna. Ter queimado foi bem grosseiro, mas a ideia de não deixar infeccionar foi boa. – Começou a passar o conteúdo do frasco na ferida do braço da colega. – Não sei quem deu esses pontos, mas faz tempo que não vejo um trabalho tão bem-feito.
Livya somente concordou enquanto esperava. Ana foi até a panela e olhou com curiosidade para seu conteúdo, mas ficou com receio de se aproximar demais e falou:
— É perigoso?
— O quê? – indagou Luís, sem desviar a atenção do que fazia.
— O conteúdo da panela.
— Não, é só uma mistura de ervas bem úteis contra veneno. Pronto. Terminei seu braço. Sobre sua perna não precisa fazer nada, mas a cicatriz vai ficar.
— Já esperava. – Livya deu de ombros.
— Bom, é isso – falou Luís, levantando-se. – Vou voltar aos meus afazeres, só não esqueça de trazer os equipamentos para uma revisão.
A jovem fez que sim enquanto seguia junto a Ana para a escadaria, que as levou de volta à superfície. Olhou em direção à caravana, mas não chegou a vê-la. O rastro no chão a fez entender que os veículos passaram por ela há algum tempo.
— O que era a porta no fundo do quarto? – perguntou a outra.
— A horta. Sim, eu entendo seu estranhamento, mas como tem muitas plantas venenosas, Luís preferiu fazer uma estufa subterrânea.
— Elas não morrem sem o sol?
— No começo, todo mundo achou o mesmo, mas parece que a princesa tinha alguns fragmentos de conhecimento antigo e usaram umas lâmpadas especiais que vieram do Bunker para mantê-las vivas.
— Legal – respondeu Livya, com um brilho nos olhos.
Ana guiou a companheira, seguindo as marcas das rodas na grama baixa. Pessoas saíam de suas casas, dando ao lugar um ar de cidade com suas multidões.
De onde estavam, já era possível ver a copa de uma árvore colossal. Os carroções pararam formando pequenas ruas ao lado dela, usando de sua sombra para não estragar as mercadorias. Livya reparou que um número grande de pessoas saía das casas levando consigo cestos presos nas costas ou pequenos carrinhos de mão.
Uma mulher passou junto a um grupo de crianças com um desses carrinhos de mão, abarrotados por destilados e carne seca. Caminhava fazendo caretas pelo peso e as crianças tentavam ajudar como podiam, mas não pareciam fazer muita diferença.
— Este é o mercado? – indagou Livya.
— Não – respondeu Ana, como se fosse óbvio. – Fica na parte de baixo. A caravana somente para ali porque é mais prático para levar as mercadorias.
Livya não compreendeu de imediato o que a outra quis dizer, mas quando chegaram perto, entendeu. A árvore ficava entre os carros, e um alçapão de tamanho anormal, com dez metros de uma ponta a outra em todas as direções, estava fechado, o que a deixou um pouco decepcionada.
Foram até onde as vendas eram realizadas, os touros foram desamarrados e pastavam a vários metros, sendo escoltados pelas crianças. Ana ficou interessada em um pedaço de tecido verde-claro.
Passear foi mais relaxante do que Livya esperava. Após tudo que passou, conseguir abaixar a guarda, mesmo que por um momento. Foi maravilhoso. Ana voltou com o tecido verde enrolado ao pescoço como um cachecol.
— Vocês viram Corvos que sumiram daqui? – indagou a jovem, enquanto jogava o tecido para trás, de forma espalhafatosa.
— Sim.
— Tinha uma mulher entre eles que lutava usando um bastão?
— Não – respondeu Livya, intrigada com a curiosidade da outra. – Por quê? Alguma Corva que lutava com um sumiu?
— Infelizmente, nunca tive muita amizade com Amanda – disse Ana. – Ela foi uma das que desapareceram, era nossa melhor Ponta de Lança.
Livya sentiu um ligeiro arrepio vir como uma onda por todo o corpo. Era também uma Ponta de Lança, e se mesmo uma Corva, que era considerada a melhor de um Ninho, sumira, o que uma novata como ela poderia fazer? Mas a lembrança de Irmãzinha fez sua incerteza desaparecer.
A movimentação parou quando todo o solo tremeu por um instante, fazendo o gado mugir nervoso. Livya, com o coração acelerado, percebeu que todos estavam calmos e notou então a causa do tremor. O alçapão se levantava lentamente.
Diferente da população, que não se importou com o acontecimento por estarem acostumados, Livya ficou petrificada ao ver a tampa se escancarar lentamente. Nas laterais, duas vigas grossas de ferro faziam somente um dos lados se levantar, engrenagens rangiam enquanto executavam o trabalho pesado.
Mesmo o alçapão levantando devagar, as pessoas começaram a sair pela escadaria que descia. A tampa não chegou a se levantar totalmente, ficando aberta a ponto de uma pessoa alta entrar, sem nenhum problema. Todo o túnel piscou algumas vezes enquanto as lâmpadas se ligavam nas laterais.
— Este é o nosso mercado – falou Ana, ficando ao lado da colega boquiaberta. – Vamos?
Somente concordando, ela junto a muitos outros, dirigiram-se para o corredor recém-aberto. Uma senhora varria os degraus enquanto desciam. Entraram em um bairro abaixo da terra, onde casas enfileiradas formavam ruas. As construções terminavam diretamente no teto, não possuindo telhado.
Livya terminou de descer a escadaria que acabava em um corredor rente à parede, levando a outras ruas. Conseguiu contar duas de cada lado e uma no centro. Cinco ruas com sete casas enfileiradas de cada lado. Lâmpadas enchiam o teto, em intervalos de cinquenta centímetros uma da outra. Eram tão bem iluminados, não perdendo nenhum pouco para o lado de fora.
Alguns dos donos de comércio desciam com cestas cheias de produtos, enquanto outros subiam para pegar mais. Ana encostou no braço da colega, chamando sua atenção.
— Quer comer pastel?
— Pastel?
— Você não conhece? – indagou Ana, perplexa ao ver a reação da outra. Não esperou por uma resposta. – Vai adorar! É uma massa frita com carne desfiada dentro.
Ana levou Livya pelo corredor lateral e foi para a esquerda até chegar à última fileira de casas. Algumas das lojas abriam ao passo que seus donos arrumavam as coisas para os clientes ou ajeitavam as mercadorias recém-adquiridas. Um cheiro agradável inundou o ar perto das duas últimas casas.
Livya viu um senhor gordo e baixo mexendo em uma panela cheia de óleo borbulhante. Ele parecia conhecer Ana, pois a cumprimentou com um sorriso.
— Trouxe uma amiga hoje?
— Sim. Você acredita que ela nunca comeu um pastel?
— Vamos dar um jeito nisso agora mesmo. Vão ser dois para comer aqui?
— Infelizmente, não. Temos que passar em um lugar antes.
— Para a viagem, então – disse o homem, colocando dois embrulhos de massa no óleo, fazendo a panela soltar estalos.
Livya viu mais comerciantes levando cestas com os mais diversos produtos para seus comércios, e viu algumas das garrafas de hidromel.
— Depois vamos para onde Sandy mandou. Te garanto que não vai ser muito agradável.
— Vi algumas dessas pessoas. Posso te garantir, Ana, eu estou preparada.
O homem trouxe dois pastéis em sacos de plástico marrom. Ana agradeceu, pagou pelo pedido e passou um para Livya.
A Corva olhou desconfiada para o alimento que esfumaçava em alguns lugares, mordiscou de leve uma das pontas e abocanhou uma maior logo em seguida. Aquilo acabava de virar sua comida preferida.
— Não tem como não gostar de pastel – disse Ana, satisfeita.
Voltaram à superfície segurando somente os papéis engordurados sem os alimentos, passando por dois Corvos novatos que fariam a vigília no mercado. Ana, então, virou-se falando:
— Melhor acabarmos logo com isso. Vamos?
— Sim. Depois podemos voltar e comprar mais um? – indagou Livya, referindo-se ao pastel.
—Se tiver estômago para isso, eu não me importaria.
Ana levou a outra para um canto mais afastado da cidade, onde um Corvo cuidava de uma das entradas. Ele as reconheceu e abriu passagem para a dupla, que desceu por um caminho mal-iluminado. O cheiro era forte antes de abrir a porta, lembrando Livya do odor do homem que a atacou no Oásis.
Sem esperar, Ana abriu a porta, que deslizou sem problemas para dentro. Todo o chão estava abarrotado de pessoas delirando, desde adultos a crianças. Corvos corriam entre elas, ajudando o máximo que conseguiam, mesmo sabendo que não faria nenhuma diferença, no fim.
Luís estava lá também com a panela que fervia mais cedo. Levava o líquido dentro de uma longa colher de ferro, despejando-o na boca dos mais agitados. O lugar fedia a morte e fezes. Livya mudou completamente de ideia sobre comer mais.
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Corvos
Science FictionA Terceira Guerra dos Antigos fez a humanidade perder toda a glória, obrigando os sobreviventes a se esconderem no Bunker. Setecentos anos passaram desde o acontecimento, e para manter a ordem o grupo armado Corvos foi criado.