Novamente Gabriel fitava o teto de seu quarto no Ninho. Era algo que sempre fazia após qualquer missão, não sabia explicar o porquê, mas aquilo o ajudava a colocar as coisas no lugar em sua cabeça. Usava os pedaços descascados e manchas na construção dos Antigos, como se fosse o rosto e memórias que viveu na missão. Era uma sensação estranha toda vez que fazia aquilo, ele se lembrava vivamente de cada momento que passou nos últimos semanas ou meses, e colocava as mais marcadas em cada uma daquelas manchas no teto. Criar um vínculo era algo comum, mesmo que tivesse como objetivo matar seus alvos, ainda assim, o tempo que passava junto muitas vezes era algo divertido e prazeroso. Mesmo que o fim fosse sempre igual e aquelas pessoas acabassem morrendo o olhando com descrença, desespero e até mesmo decepção.
Gabriel então separa essas memórias negativas e deixando somente aquilo que não o corroía por dentro, focando somente em uma única memória. Fazendo todo o resto escorrer para o fundo de sua mente, onde ficaria guardado junto a outras. Cada marca naquele teto sob sua cabeça era algo bom, o resto ele simplesmente fingia que nunca aconteceu.
Cada Corvo lidava com seus atos de uma forma diferente, e nenhum nunca se intrometeu no método do outro. Alguns eram um pouco excêntricos igual a Gabriel no jeito que deixava a mente sã, já outros usavam desde sexo, ou exercícios a comida, até mesmo o consumo de algumas drogas para conseguir manter o controle e não cair no abismo da loucura. Pois um Corvo louco é algo extremamente problemático e principalmente letal.
Naomi, como Gabriel sabia muito bem, usava o álcool para reprimir memórias e coisas ruins que passou, por isso era tão amiga de Aldrey. Mas em missão todos tinham o dever de manter a calma e nunca perder o controle, pois eles eram a última linha entre o controle e o animalesco do ser humano. A única linha.
Sentia o corpo completamente molhado após o longo banho, do qual passou mais tempo lutando para não dormir do que realmente se importando com a higiene. Gabriel se esparramou na cama completamente molhado, ciente de que Naomi iria dar um sermão dele por aquilo mais tarde. Não sentia nenhuma dor nem cansaço físico, só o estranho vazio que vinha após um trabalho concluído, e a vontade intensa de ficar deitado. Se forçando a ficar em pé, o rapaz vai até o modesto guarda-roupa, onde escolhe roupas padrões dos Corvos, não havia muitas outras opções.
Ao se virar desvia o pé por reflexo do lugar onde quase quebrou o dedinho na cota de malha de sua parceira. Ficou perplexo por ela querer usar algo como aquilo, mas resolveu não falar nada. E de certa forma achou a estranha proteção bem interessante. Além de estilosa, tentou usar, mas o peso quando pegou tirou totalmente sua vontade.
Passos ressoavam no corredor e se aproximavam do quarto em que o rapaz estava sentado segurando seu coturno, quando parou repentinamente e então dois toques na porta. Gabriel conhecia bem aquela batida, se levantando vestindo somente um dos coturnos estando descalço do pé direita grita em resposta.
— Pode entrar!
Com um rangido baixo, mas penetrante a porta se abre revelando a figura de Jonas logo atrás dela, o homem parecia exausto e seus cabelos mais grisalhos do que antes. Entrou sem fazer cerimônia, fechando a porta atrás de si.
— Vejo que está bem.
— Claro senhor, mais um dia de trabalho.
— Ótimo, não perdeu seu bom humor.
— Nunca, senhor.
Jonas encosta contra a madeira da porta com um olhar perdido por alguns instantes, ficando alguns segundos em total silêncio somente analisando o nada. Quando volta a falar.
- Recebi o relatório sobre a missão, Otto me passou o que importava ontem à noite. E tive um outro também de um dos Corvos que foi ao local mais tarde, depois que vocês haviam partido. Fiquei sabendo que não foi uma visão muito bonita.
— Não mesmo, senhor — concordou Gabriel sério.
— De qualquer forma, fico satisfeito que a missão tenha se resolvido sem nenhuma baixa do nosso lado. — E novamente o olhar preocupado retorna no rosto de Jonas.
Gabriel notou a algum tempo já isso, o líder dos Corvos estava com alguma preocupação em sua mente o tempo todo, ele nunca tinha vindo ver Gabriel ou qualquer outro após uma missão, sempre eram eles que precisavam ir fazer seus relatórios. Tinha algo a mais, e Gabriel suspeitava que logo iria descobrir o que.
— Senhor — começou Gabriel, que não conseguiu controlar a própria boca, novamente. — Por que veio me ver?
— Mais tarde vou precisar falar com você e Naomi — levantou a mão rapidamente para calar Gabriel que estava prestes a protestar. — Estou ciente que acabou de voltar, e foram quatro meses, estou bem ciente disso Gabriel, mas vou precisar de um dos melhores Infiltradores que eu tenho a disposição, e Naomi já foi liberada para voltar à ativa.
Aquela foi a primeira vez que Gabriel foi elogiado pelo líder, o que deixou sem palavras, somente concordou com a cabeça, enquanto o Corvo mais velho abria a porta para sair.
— Em duas horas na minha sala, leve Naomi junto.
A porta se fechou deixando Gabriel completamente desnorteado com o acontecimento, sentindo um frio desagradável em seu estômago. Se sentou para colocar o coturno que faltava, mas parou tamborilando os dedos em suas pernas por alguns instantes, algo do gênero jamais aconteceu com ele em toda sua vida. Igual as memórias e pensamentos desagradáveis o rapaz deixou de lado, iria encontrar Naomi primeiro.
Prestes a sair lembrou de seu pertence mais precioso, se abaixou na cama vendo a katana de Naomi guardada contra a parede, e ao fundo um outro embrulho. Precisando enfiar a cabeça embaixo do móvel pegou o pacote. O tecido estava com bastante pó, e roído por ratos em alguns pontos. Colocando sobre a cama, o nó que havia feito a quatro meses ainda estava lá, com habilidade o desfez revelando o conteúdo.
Uma Magnum modificada estava diante do rapaz, a arma tinha o cano duas vezes mais grosso e seu tambor para balas comportava somente quatro cargas, a empunhadura era de madeira polida com muitos riscos. A herança de seu mestre. Verificou minuciosamente se não havia nada de errado com o objeto. Mesmo que estivesse parada a tanto tempo e um pouco mordiscada por ratos principalmente na empunhadura, o objeto assassino estava em perfeitos estado, pelo menos para ele. Depois iria ver a opinião de Will sobre. Voltou a dobrar o pano quando uma cápsula de munição escorregou caindo na cama. Uma bala duas vezes e meia maior do que a de uma Magnum comum, feitas individualmente para ela.
Gabriel tinha somente duas delas, pediu antes de sair pra Will fazer mais uma remeça, achou que o velho Corvo fosse desferir um soco em sua direção, falando que pretendia matar ele de tanto trabalhar, entre outras obscenidades. Gabriel gostava de Will. Colocando a munição junto, o rapaz devolve o embrulho para baixo de sua cama, e sai do quarto a passos largos, precisava achar Naomi, sentia que estava prestes a entrar em um novo furacão. Um pior que o incidente S.L.
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Corvos
Science FictionA Terceira Guerra dos Antigos fez a humanidade perder toda a glória, obrigando os sobreviventes a se esconderem no Bunker. Setecentos anos passaram desde o acontecimento, e para manter a ordem o grupo armado Corvos foi criado.