— Eles usam sobretudo? – indagou Gabriel, empolgado na cama ao lado de sua companheira.
— Sim – respondeu Naomi, segurando o riso. Sabia da estranha obsessão dele por roupas longas.
Haviam chegado na Cova trinta havia um dia e receberam quartos no Ninho para descansarem e se limparem, porque, segundo Nahara, estavam fedendo e nenhum teve como argumentar. O Ninho era completamente diferente, era mais subterrâneo. A construção lembrava um bunker. Na parte de cima, havia uma casa com a escadaria que os levava para baixo, tirando essa diferença, o resto era extremamente semelhante.
Pelo que Naomi percebeu no resto da cidade, a ideia era a mesma, as ruas diferentes da Cova 34 estavam abarrotadas de casas coloridas. Nesta, eram pequenas construções que levavam para as casas escondidas sob a terra.
— Você está tirando uma com a minha cara – concluiu Gabriel, com os olhos semiabertos.
— Logico que sim, quem usaria um sobretudo em uma luta? É fácil de puxar e nos deixa em clara desvantagem.
— Naomi, Naomi – retrucou o outro, com a voz cansada, afinal, já tiveram essa conversa dezenas de vezes. – Não entendo como ninguém percebe que iríamos ficar incríveis com eles, combinam demais com nosso visual.
— Até hoje somente você defendeu esta ideia.
— Tenho certeza de que os Antigos concordariam.
— De onde você tirou isso? Ah, não importa, somente esqueça.
Gabriel estava prestes a argumentar quando alguém bateu à porta, e então a voz de Ana veio por detrás dela.
— Vou deixar as roupas novas aqui.
— Obrigada! – falou alto Naomi. Não teve resposta.
Aproveitando que havia se sentado durante a discussão, o rapaz se levantou nu para pegar as roupas cuidadosamente dobradas no chão. Olhou para ambos os lados do corredor e não vendo a Corva em lugar nenhum, deduziu que havia entrado no quarto de Livya.
Voltou com as mudas nas mãos e as colocou no colchão. Naomi foi a primeira que se adiantou pegando calças e uma das camisas com manga comprida. Ele também pegou o mesmo que a outra e se vestiu.
Sentiu-se um pouco incomodado com a camisa de manga comprida, inicialmente, mas não deu muita atenção a isso. Novamente, alguém bateu à porta, só que desta vez era Livya.
— Estão prontos, pessoal?
— Um momento – falou Naomi, lutando mais uma vez para colocar a calça.
Seu companheiro somente a acompanhou em sua luta para entrar na calça apertada, até que finalmente venceu.
— Você está bunduda – comentou.
Naomi o ignorou completamente enquanto abria a porta. Livya e Ana estavam do outro lado, esperando-os. Igual à dupla, a novata também recebeu trajes novos, e as horas de sono ajudaram com as profundas olheiras que agora eram somente um resquício do que já foram.
Gabriel sentia o corpo inteiro doendo e o corte nas costelas ainda queimava em febre. Naomi, por sua vez, estava normal.
— Já estão arrumados – disse Ana, animada. – Que bom. Sandy quer falar com vocês o quanto antes.
O trio ouviu sobre a Sandy enquanto eram trazidos ao Ninho no dia anterior. A mulher era a nova líder dos Corvos na cidade, e Nahara comentou que ela era a comandante mais jovem em muito tempo nas quarenta e oito cidades, com seus vinte e três anos. Era mais jovem que Gabriel.
— Sim – respondeu Naomi, já na porta. – Melhor irmos falar com ela, então.
Gabriel foi o último a sair, fechando o quarto atrás de si. Seguiram pelo corredor, que diferente do Ninho deles com o chão de madeira, era feito com cimento para dar mais segurança embaixo da terra. A maior diferença eram as escadas que sempre levavam para cima, e no fim do caminho linear, os degraus subiam.
Pararam na primeira porta antes da escada. Ana bateu à porta, esperando alguns instantes antes de abrir.
— Eu os trouxe – disse para a outra no aposento.
— Obrigada, Ana – respondeu Sandy.
Livya, que estava ao lado de Ana, viu o quarto antes dos outros. Um aposento muito maior que o de Jonas, com uma cama e guarda-roupa. Luzes de LED iluminavam o aposento de paredes brancas e uma mesa, com quase dois metros, ficava encostada na parede direita ao lado da porta, que dava ao banheiro. Mesmo sendo um móvel maior, ainda assim estava abarrotado por papéis empilhados, de forma quase sistemática.
A mulher, líder dos Corvos, estava diante da mesa, sentada em uma cadeira de ferro, com almofadas pretas, e se virou ainda sentada, para fitar o grupo. Gabriel passeou os olhos pelo quarto até chegar à sua dona, uma mulher que parecia ter o mesmo tamanho que Naomi, mas diferente de sua companheira de cabelos negros e cortados na altura do ombro, a outra era loira, com uma trança que balançava solta atrás da cadeira, seus olhos verdes o fuzilavam, mas algo nela a deixava com uma aparência dócil.
— Pode ir, Ana – falou Sandy, sem se levantar.
— Claro – respondeu, saindo e deixando somente o trio junto à outra.
— Sou Naomi – apresentou-se a jovem e seus colegas logo em seguida. – Obrigada por nos emprestar um quarto e roupas.
— Imagina. Fiquei curiosa com o que Nahara me contou sobre vocês.
Gabriel prestou mais atenção nela e mudou de opinião sobre a aparência dócil. Ela era quase como se fosse um predador olhando a presa, seus olhos chegavam a brilhar. Não era à toa que a líder do Ninho era mesmo tão nova.
— O que exatamente ela te contou? – perguntou Livya, tentando soar o mais inocente possível.
— Como se conheceram na caravana – começou Sandy, que mantinha a mesma posição desde que chegaram. – As histórias que contaram para ela no caminho e sobre ter achado alguns dos meus Corvos, recentemente.
— Não posso dizer que eram Corvos deste Ninho – respondeu Gabriel. – Mas topamos com três deles no Oásis. Aqui a prova, se não quiser acreditar.
Andou até a mesa dela e depositou ali os anéis. Sandy encarou os objetos por longos segundos, como se perdida em pensamentos, e então, com um dedo os espalhou pela mesa, e falou:
— Não tinham outros?
— Felizmente, não – comentou Naomi, mas então entendeu.
Gabriel e a parceira compreenderam. Se Corvos, em geral, trabalhavam em duplas, então seis deles sumiram, ou seja, faltava a metade.
— Quero saber o porquê de terem os encontrado e o motivo de estarem no estado em que estavam.
Naomi iria dar uma resposta irritada, mas lembrou que a mulher era a líder daquele Ninho. Tinha obrigação com os membros, então engoliu os protestos e explicou o porquê de estarem lá.
Sandy somente escutou, sem dizer nada, enquanto ouvia sobre a missão que receberam, de que a S.L. era um problema em outra Cova, sobre os membros que morreram, o metrô, e esboçou reação ao ouvir falar de Grande Irmão.
— Isso é tudo – finalizou Naomi.
— O problema chegou realmente mais longe do que eu esperava – resmungou a loira, levantando-se e andando de um lado ao outro. – Fez deles dependentes químicos – continuou a falar consigo mesma.
— Sandy – chamou Gabriel. – O estado da cidade está realmente ruim por causa da droga?
— Bastante – respondeu e parou, fitando-o. – Temos dois galpões inteiros somente para deixar os usuários, não vou nem comentar o estado da Vala.
— Merda – falou Gabriel, baixo.
— Hylari deve ter falado sobre nós.
— Como você sabe? – começou Naomi, mas parou ao ver a reação de Sandy. Líderes de Ninhos deveriam ter todo tipo de informações, então refez sua fala: – Não tudo, somente que estavam sofrendo e que talvez tenham conseguido a localização da base de Grande Irmão.
— Talvez não – corrigiu-a Sandy. – Eu consegui.
— Onde? – perguntou Livya, sem perceber.
— Por que iria dizer a vocês? – rebateu Sandy. – Este é um problema do meu Ninho.
— Nós recebemos essa missão – falou Gabriel, de forma cortante. – Passamos por muita merda e perdemos companheiros igual a você. Não estou falando para fazer tudo sozinho, e, sim, somente participar.
A mulher o olhou, parecendo chocada por alguém ir contra o que dizia, mas um sorriso se abriu em seus lábios. Sentou-se em sua cama, falando.
— Fico feliz que ainda tenham vontade de ir até o final disso tudo.
Os três perceberam que passaram por um teste. Aquela era realmente uma mulher perspicaz.
— Um dos grupos que mandei, voltou com informações. Infelizmente, outros três não tiveram essa sorte – comentou com amargura. – A localização deles é na antiga Cova 50.
— Mas... – Livya cortou, e corou quando virou o centro das atenções. – Existem somente quarenta e oito Covas, certo?
— Atualmente, sim – respondeu Naomi. – Já foram muitas. Infelizmente, várias acabaram entrando em colapso e sobrou somente essas.
— Um sobrevivente – sussurrou Gabriel. – Preciso saber, Sandy. Ele tem algum Conhecimento Perdido?
— Gabriel, certo? – indagou, e continuou, assim que recebeu um aceno positivo de cabeça. – Pensei nisso também, Gabriel, mas pelo que contou sobre a fábrica, eu acho realmente difícil. Não adianta ter o conhecimento sem os equipamentos para construir as máquinas.
— E Irmãzinha? – perguntou Livya.
— Esta é a primeira vez que escuto falar sobre ela, mas se ela venceu vários Corvos, então é um perigo, sem dúvidas.
— Como vai acontecer? – inquiriu Naomi. – Este ataque.
— Em dois dias, iremos mandar quase o Ninho inteiro para exterminá-los.
Gabriel ficou surpreso. A mulher planejava somente atacar de frente e acabar com tudo. Antes de abrir a boca, Naomi o fez:
— Qual a estratégia?
— Não precisamos de nada disso. Somos Corvos, iremos esmagá-los, melhor dizendo, iremos levar uma chacina a eles. – Antes que qualquer um protestasse, ela continuou: – Fico feliz que irão conosco. Agora eu recomendaria descanso, passaria também no Luís, nosso armeiro e médico. Se me dão licença.
Sem esperar por uma resposta, Sandy os ignorou, voltando a se sentar junto aos papéis. Vendo que a conversa havia acabado, o trio saiu. Livya sentiu o mesmo da vez que conversou com Jonas. Fora estranho e rápido.
Ana os esperava do lado de fora.
— Então? Como foi?
— Ela é, no mínimo, intensa – respondeu Naomi.
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Corvos
Science FictionA Terceira Guerra dos Antigos fez a humanidade perder toda a glória, obrigando os sobreviventes a se esconderem no Bunker. Setecentos anos passaram desde o acontecimento, e para manter a ordem o grupo armado Corvos foi criado.