Capítulo 27

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Ozy estava sentado contra a parede, comendo um pedaço duro de pão seco com um copo d'água. Olhava seus pais desacreditados com o que o destino fez em suas vidas. Há uma semana, todo o ambiente era de alegria, e agora era tristeza.
Sua mãe estava sentada à mesa no centro da cozinha. Apoiava os dois braços na madeira e usava as mãos para apoiar o rosto, tentando esconder os olhos vermelhos pelo choro. De frente a ela, seu pai fumava um cigarro atrás do outro.
Ele realmente não entendia o porquê daquela tristeza toda. Sua irmã havia nascido com vida e com saúde, mesmo que as mutações, uma herança maldita dos Antigos, tenham lhe escolhido. O pai, um homem com seus trinta e cinco anos, e a mãe com trinta e dois, ainda eram jovens, mas todas as gravidezes anteriores da mãe não passaram do terceiro mês. Somente Ozy, de quinze anos, sobreviveu.
Foi o primeiro filho, e até pouco tempo o único. Acostumou-se com os abortos que a mãe sofria de forma regular. Chegava a ser um pouco irônico o fato de que quando uma destas gravidezes vingou, o bebeu nasceu com mutação.
— O que vamos fazer? – indagou a mãe, ainda com as mãos no rosto.
Ele levantou a cabeça para o casal enquanto lutava para engolir um pedaço seco do pão, prestou atenção fixamente no pai, que acendia um novo cigarro. Dando uma longa tragada e soltando a fumaça em direção ao teto de madeira, o pai falou, sem nenhuma emoção:
— Sabe muito bem o que temos de fazer.
— Finalmente temos mais um filho, e está me dizendo para dar ela aos Transportadores?
— Sim. – Vendo o olhar da esposa, levou o cigarro à boca e deu uma nova tragada. Respondeu, deixando a fumaça sair entre as palavras. – Jasmine, o que quer que eu faça? Não tem como lutarmos contra as regras do Bunker.
— É nossa filha!!
— Acha que eu não sei?! Mesmo se não a entregarmos, hoje ou daqui a duas semanas, os Corvos vão aparecer aqui e fazer isso por nós a qualquer momento.
Escorando na parede para se levantar, Ozy levou o copo vazio para junto da louça suja, escutando os pais discutindo o tempo todo. Seguiu por um corredor de madeira, passando por uma porta aberta que era seu quarto, e uma fechada. Um quarto que passou os últimos quinze anos vazio, agora tinha alguém dentro, sua irmã.
Esgueirou-se para dentro com cuidado para não a acordar. O pequeno aposento estava totalmente escuro, um pano grosso tampava a passagem do sol, as roupas que antes eram muito bem dobradas e empilhadas, estavam esparramadas. O único móvel, um berço feito de madeira, estava encostado no fundo do aposento. Era como se os pais tentassem esconder a filha do mundo, de toda forma.
Com uma revolta que crescia de forma acelerada, Ozy foi até a lateral do móvel e observou a irmã dentro dele. Ela dormia pacificamente, não imaginando a dor que causava só por existir. A cabeça do bebê era desproporcional ao corpo, não tinha as orelhas e o nariz, apenas uma cartilagem com dois buracos onde era para ser o nariz, e dois furos em cada lado, no lugar das orelhas.
Os olhos fechados e inchados pelo recente nascimento eram duas vezes maiores que os de um adulto. O corpo miúdo e musculoso com calombos em diversos locais, tinha as mãos do tamanho de um homem adulto grande.
Ozy ficou parado durante incontáveis minutos somente observando-a. Sempre quis um irmão, e a cada aborto da mãe, ele era o que mais sofria escondido. Não se sentia sozinho agora enquanto via o bebê dormindo despreocupado. A ideia de deixá-la ser levada à Vala, deixava-o com um nó forte na garganta. Não se importava por ela ser do jeito que era.
— O que está fazendo aí dentro? – indagou a mãe, da porta semiaberta. – Saia agora!
Não vendo como ir contra as palavras de Jasmine, ele somente saiu com cuidado para não acordar a bebê. A porta se fechou logo que saiu, então teve que confrontar os pais.
— Já disse para não ficar junto daquilo – ralhou o pai, de forma ríspida, enquanto apontava em direção ao quarto. Tinha o pescoço vermelho pela raiva.
— Só queria ver minha irmã – respondeu Ozy, simplesmente.
— Aquilo não é sua irmã. – Cortou o homem, que olhou para a esposa, buscando ajuda.
Jasmine ficou pálida, conseguiu manter o semblante frio ainda assim.
— Sua irmã está morta, entendeu? Ela nunca chegou a nascer.
— Como assim, mãe? Ela está logo atrás desta porta! Vão dá-la ainda assim para um estranho levá-la embora!
— Ela é um monstro, Ozy!! – gritou a mãe, prestes a ter um ataque de histeria. – Eu dei à luz a um monstro!
A mulher caiu em prantos e foi abraçada pelo marido que tentava consolá-la. Ozy não suportou aquilo. Como alguém poderia tratar um filho daquela forma? Disse:
— Os monstros aqui são vocês.
O homem se desvencilhou da mulher e desferiu um soco, acertando a lateral do rosto de Ozy, que caiu. O silêncio que veio depois durou pouco, pois o choro vindo do quarto o quebrou. Meio zonzo, o rapaz se levantou, passando a mão onde fora acertado, sentindo as lágrimas encherem os olhos.
— Saia daqui – Jasmine falou pelo marido. – Não quero te ver hoje, me entendeu? E não fale sobre a coisa no quarto para ninguém.
Correndo com todas as forças, Ozy saiu de casa e sentiu o sol bater em seu rosto. Fechou os punhos com força para não gritar de frustração, enquanto sentia o gosto de sangue na boca. Conseguiu, por fim, suprimir o que sentia e se preparou para se misturar com as pessoas que andavam pelas ruas da Cova 50.
Pássaros voavam pelo céu, mesclando cores e sons no azul. Toda a cidade era feita basicamente por madeira, desde casas até mesmo calçadas, que eram pedaços finos do material, cobrindo corredores ou o chão dos centros comerciais. Ozy reparava nas cores das habitações, um leque bem pequeno, mas era quase uma regra, mesmo inconsciente, que usassem somente um tipo de árvore para uma construção.
Sons de serrotes e machados enchiam o ar. A Cova 50 era no centro de uma floresta, os moradores basicamente tiravam o sustento dela. Toras eram trazidas por uma estrada central que cortava toda a cidade em dois, pessoas entravam na mata com cestos amarrados às costas, indo colher ou caçar.
Ozy seguiu logo atrás de um homem idoso que parecia somente passear, pela velocidade com que andava. Controlando-se para não começar um tumulto, o rapaz acelera e passa pela lateral do homem, esgueirando-se entre a muvuca. Não queria ficar perto de ninguém, rumava em direção ao lugar que ia para ficar sozinho, um local que era quase seu esconderijo desde criança.
— Ozy – gritou uma mulher, que amassava uma massa para fazer pães. – Ei, Ozy!
Ele parou e se aproximou dela com má vontade, espremendo-se entre duas pessoas que analisavam um bolo com pedaços de frutas. Ozy enfim ficou a poucos metros, sentindo o cheiro de doces e salgados que se misturavam nas prateleiras. Isabela, a mulher que acabava de amassar a massa, sorriu ao vê-lo.
Ele a conhecia desde que se lembrava por gente. A mulher magra e alta, com cabelos negros e sempre presos, era uma amiga de sua mãe, vivia em sua casa. Voltando a trabalhar na massa, deixava as mãos fazerem sozinhas o trabalho enquanto fitava o rapaz.
— Gessica saiu mais cedo – falou Isabela, que percebeu o rapaz procurando algo. – Pedi para que ela comprasse ovos, mas logo vai chegar, se quiser esperar.
Ozy ponderou a proposta da padeira, mas refutou a ideia. Gessica era sua melhor amiga, filha de Isabela. Cresceram juntos pela proximidade de suas mães.
— Tenho um compromisso – mentiu ele. – Mande um oi para ela.
— Espere um momento. – Isabela freou a partida dele. – Como está a gravidez de sua mãe? Faz tempo que não a vejo.
O gosto amargo voltou a impregnar a boca de Ozy, que havia conseguido tirar os acontecimentos de cedo da cabeça. Concentrando-se o máximo para não demonstrar o que sentia, respondeu:
— Morreu. – E complementou: – Natimorto.
Isabela parou o que fazia, abaixou a cabeça diante da mentira, saiu de trás da mesa que usava para trabalhar, e com os olhos marejados de lágrimas, deu um longo abraço em Ozy, que não resistiu ao afeto dela. A mulher tinha cheiro de pão e frutas secas.
Ozy somente ficou junto a ela por um tempo, sentindo as mãos cheias de massa sujarem sua camisa, mas pouco se importou, lutou para conter as lágrimas, conseguindo por pouco.
— Meus pêsames – disse Isabela, distanciando-se do rapaz. – Vai ficar tudo bem, eu prometo. Mais tarde vou visitar sua mãe.
— Claro – falou Ozy, sentindo a língua inchada na garganta e sua boca seca. – Mas seria melhor amanhã de manhã, minha mãe não está bem para receber ninguém hoje – mentiu novamente, sabendo que o Transportador passaria por lá.
—Tudo bem, amanhã pela manhã, então.
Despedindo-se dela, Ozy apertou o passo para abrir uma boa distância. Não queria mais mentir. Sabia que era bom nisso, e nos últimos dias, foi o que mais fizera, mas gostava legitimamente de Isabela.
O mercado ficou visível no fim da rua a qual andava. Era um lugar grande, no centro da Cova, coberto por um teto feito de folhas de bananeira. Abaixo dele, havia dezenas de barracas. Lembrou-se de que Gessica estaria por ali e cortou caminho na primeira oportunidade.
Andou por uma rua lateral, escutando a madeira ranger sobre seus sapatos feitos de couro. Sentiu o quanto era pequeno, pois quanto mais andava entre as pessoas, mesmo passando pelo pior momento de sua vida, o resto do mundo simplesmente não ligava, o que somente alimentava a raiva que sentia.
Corvos andavam apressados em todas as direções. Ozy não dera muita importância a isso antes, mas agora a movimentação era evidente. Vê-los com equipamento completo e em grupos era normal somente quando saíam em missões.
Parecia que todo o Ninho estava vazio assim que passou na frente. Era uma casa grande, quase cobria um quarteirão inteiro, feita de toras grossas e com um corvo de ônix na frente da porta escancarada. Espiou o interior, viu as mesas compridas e alguns dos corredores, mas não havia ninguém.
Não era o único que sentia tal estranheza, mais curiosos bisbilhotavam os Corvos. Mesmo diante do acontecimento incomum, Ozy somente manteve o rumo para seu lugar especial.
Cinco minutos passaram e Ozy estava no fim da Cova, já conseguindo ver as árvores nitidamente no fim da rua, perdendo-se como um tapete verde no horizonte. Quando um carro passou rente a ele virando a rua, ver o veículo lhe causou um misto de curiosidade e perplexidade. Nunca vira um andando, o mais próximo que havia visto fora somente os carros de boi. Aquilo teria o feito voltar imediatamente para casa, mas não queria saber dos pais. Só de lembrar deles, a raiva voltava.
Entrou na mata seguindo um caminho quase invisível, usado antes para ir em um pomar. A grama alta batia em sua cintura, mas como já estava acostumado, não se importava com a coceira ou quando pinicava. Logo viu o lugar para o qual ia. Um jequitibá colossal crescia escondido entre a vegetação, entre as árvores. As raízes saíam da terra em alguns lugares, dando a impressão de que a árvore andava.
Ozy não sabia a exata idade do jequitibá, mas Gessica estipulou que eram pelo menos quatrocentos anos, da época em que não havia humanos fora do Bunker. Falando na Gessica, Ozy viu um par de sapatos marrons balançando sobre um galho mais baixo. A garota o fitava com seus grandes olhos castanhos, e diferente da mão, ela sempre deixava seus cabelos negros soltos ao vento.
— Realmente veio para cá – disse Gessica, enquanto descia da árvore, com habilidade de anos subindo nela.
— Como sabia que eu vinha? – indagou o rapaz, indo até uma das raízes.
— Te vi quando saiu da padaria mais cedo, você não me ouviu chamar, e o jeito que minha mãe estava, dizia que algo acontecera. – Enfim chegou ao chão e caminhando para junto do tronco, continuou: – Falou que sua irmã morreu. Por que mentiu?
— Eu não menti! – disse Ozy, com falsa indignação.
— Por favor, Ozy. Te conheço desde pequena, já vi você quando aconteceu um dos abortos da Jasmine. Passava pelo menos cinco dias aqui.
Aproximou-se do rapaz, que parecia prestes a protestar, mas acabou soltando o peso contra a raiz, se sentou de frente a ele e olhando-o nos olhos, continuou:
— O que realmente aconteceu?
— Ela não morreu, Gessica. – Poder falar isso para alguém foi como tirar um peso do peito.
— Já imaginava, então?
— Ela nasceu com deformação.
A garota levou as mãos à boca. Sabia, assim como todos, o destino daqueles que nasciam deformados: a Vala. Um lugar afastado da cidade, dentro de uma clareira, onde pessoas viviam em cavernas e barracas improvisadas entre as árvores.
Gessica segurou as mãos de Ozy para tentar confortá-lo. Ficaram longos minutos quietos, escutando o barulho da mata.
— Eles vão entregá-la ao Transportador esta noite.
— Seus pais? – Mas não precisou de uma resposta, já sabia. – E agora? Vai deixá-los fazerem isso? Sei o quanto quer um irmão.
— O que eu posso fazer? Nada!!
Ela soltou as mãos suadas dele e se sentou a seu lado, repousando a cabeça no ombro do rapaz. Voltou a segurar uma de suas mãos.
— Por que não fugimos?
De supetão, Ozy se mexeu para ficar de frente a ela. Estava prestes a censurá-la por fazer uma brincadeira tão fora de hora, mas o que viu não foi o rosto de alguém que brincava, mas, sim, o de alguém determinado. Voltou a relaxar, ainda um pouco aturdido com a proposta. Sentia o coração martelar nos ouvidos.
Uma arara que escutava a conversa em um dos galhos mais altos do jequitibá, levantou voo gritando para o céu como se estivesse indignada. O acontecimento assustou os dois que começaram a rir, perdendo toda a tensão de alguns instantes atrás.
— Animal idiota – disse Ozy, limpando os olhos.
— Olha quem fala!
— Muito engraçado. – Voltando a se apoiar na raiz, Ozy continuou: – Me assustei mais com a arara do que com a sua proposta.
— Eu estou falando sério. – Gessica cortou, firme. – Podemos pegar sua irmã e fugir para alguma das cidades sem Ninhos. Ouvi dizer que no deserto há uma chamada Oásis, que começou a crescer, ou simplesmente viver junto das caravanas.
Ozy somente a observou boquiaberto e se deixou levar pelo momento, falando:
— Aceito – conseguiu responder. – Vamos embora hoje.
Gessica se levantou animada, abraçou o rapaz, fazendo-o sentir algo que há muito não conseguia mais sentir: um pouco de esperança.
— Vou passar em casa e pegá-la – respondeu, enquanto ainda era abraçado. – E depois quero ouvir mais sobre esse tal de Oásis.
— Pode deixar – falou Gessica, radiante.
Os gritos então silenciaram toda a floresta junto ao som de disparos e caos. Ambos se separaram em choque. Uivos e algo que parecia ser uma risada macabra, se juntaram à confusão.
Cheiro de fumaça começou a impregnar o ar e a manchas de fumaça se levantaram ao céu. A cidade estava sendo atacada.
— Minha irmã – lembrou-se Ozy, disparando pela trilha a qual pegara mais cedo, em direção à sua casa.
— Espere!! – gritou Gessica, seguindo no encalço do outro.
— Vou pegar ela e daí fugimos – gritou sobre o ombro.
Gessica somente concordou seguindo-o de perto. Entraram numa cidade que queimava e o caos reinava, casas estavam em chamas e pessoas corriam em todas as direções, fugindo de alguma coisa.
Ozy corria quando pisou em algo úmido e caiu pesadamente. A outra ia ajudá-lo a se levantar, mas estacou onde estava, ficando pálida e com os olhos arregalados. Praguejando, o rapaz olhou onde pisou e sentiu a boca secar. Era um corpo transpassado por um dardo de madeira, estirado de barriga para baixo, com o objeto que o matou cravado no meio das costas.
Levantou-se de supetão, afastando-se por diversos passos. Novos gritos chamaram atenção mais à frente, onde uma mulher montada em uma hiena do tamanho de um cavalo e com mais de um metro e meio de altura, caçava um grupo de pessoas. A mulher estava toda pintada com faixas brancas e estocou um dardo semelhante ao que Ozy viu havia pouco.
O animal rosnava e ria ao mesmo tempo enquanto sua boca salivava a ponto de pingar. Ozy voltou a si quando uma criança que corria junto ao grupo foi abocanhada em um dos braços e era sacudida como um pano velho. O que parecia ser a mãe dela, tentou ajudar aos gritos, mas o dardo encontrou seu peito antes.
Pegando Gessica pelo braço, arrastou-lhe em direção à viela, poucos metros da dupla. Sentiu-a tremer e sua pele estava fria. Ficaram somente escutando quando sons de tiro encheram a rua.
Colocando somente um pouco do rosto para fora a fim de enxergar, conseguiu distinguir alguns Corvos matando a hiena e a mulher. Logo em seguida, voltou-se para Gessica.
— Vamos, rápido. – Mas a garota estava estagnada, o que o fez pegá-la pelo rosto com as duas mãos e aproximá-lo do seu, fazendo-a olhar diretamente para ele. – Estamos quase chegando – mentiu. – Lembra? Pegamos minha irmã e daí fugimos.
Gessica piscou concordando quando algo veio à sua mente, fazendo-a gritar no mesmo instante.
— Minha mãe!! – falou disparando em direção à rua.
Ozy tentou impedir, mas não teve tempo. Viu-se sozinho no beco. Conseguiu visualizar a amiga entrando na mesma rua em que os Corvos faziam a limpa, o que o deixou mais tranquilo. Com eles ali, nada de ruim deveria acontecer.
Voltou a ter seu objetivo em mente e correu até a outra ponta do beco, saindo em uma rua que queimava e fedia à carne queimada e sangue. Ficava cada vez mais frequente ver mais pessoas mortas junto aos animais, até mesmo alguns Corvos. Viu que um segurava uma faca e foi até ele, pegando-a.
O objeto estava melado de sangue. Ignorando o desejo de jogar a arma para longe, continuou correndo. Um grupo de homens montados em hienas cavalgava no meio da rua principal, levando tochas amarradas em varas enquanto tacava fogo em tudo. Felizmente para Ozy, um grupo de pessoas corria, tentando fugir pela rua. Ele se juntou ao grupo para melhorar suas chances.
Quase imediatamente ele se arrependeu da decisão, pois um rapaz pouco mais velho que ele, caiu agonizando de dor com um dardo cravado na coluna. Não havia tempo para pensar, ouvia as pessoas caindo à sua volta aos berros. Algo passou raspando por sua cabeça e cravando no chão à frente. Ozy viu o dardo que ainda balançava no lugar que caiu, virou ao fim da rua, com alguns outros sobreviventes.
O que antes eram trinta, agora não passavam de seis. Viu-se na rua onde Isabela conversara com ele mais cedo, e igual aos outros que sobraram da matança, seguiu o caminho sozinho. Com as paredes destruídas e pegando fogo, uma das casas da rua estava com um veículo dentro. Era possível ver um Corvo desesperado para sair enquanto queimava vivo.
Seguiu reto, pois não tinha como salvar ninguém. Mal conseguia manter a própria vida, e então viu a padaria de Isabela.
—Isabela!! – gritou desesperado. Sentiu a garganta doer de tão seca. – Isabela!!
Então parou quando a viu. A mulher que sempre foi agradável com ele estava deitada, com diversos pedaços do corpo arrancados a mordidas, o braço direito havia sumido e parte da perna do mesmo lado, teve um destino semelhante.
Apertou o punho da arma enquanto sentia as lágrimas de ódio descerem. Não achou Gessica em lugar nenhum, o que foi um pequeno alívio. Correndo ao passo que as lágrimas embaçavam seus olhos, passou por mais matança enquanto gritos e tiros ecoavam por toda a cidade. Conseguiu avistar sua casa, mas o fogo que era passado pela moradia vizinha, espalhava-se pelas paredes.
Jogou-se contra a porta, fazendo-a se abrir. Ozy sentiu o bafo quente do ar engoli-lo. A casa ainda não queimava por completo. Passou abaixado, indo em direção ao quarto da irmã, quando Jasmine gritou:
— Ozy! Ainda bem! Nos tire daqui!
Ozy se virou no mesmo momento, deparando-se com seu pai soterrado por uma das paredes que desabara. Seu pai estava desmaiado debaixo da madeira, mas Jasmine esticou as mãos gritando por ele.
— Filho, rápido, nos ajude!
Ele pensou em ir, mas soube que não teria tempo para tirar ambos e depois a irmã, ainda mais com o pai desmaiado. Levou a mão para a maçaneta do quarto do bebê, sentindo o ferro queimar toda a sua carne enquanto entrava. Havia feito sua escolha. Encontrou o pequeno rolo de lençóis aos berros. Sem pensar, pegou-lhe com cuidado, pois ainda carregava a arma.
— O que está fazendo!? – gritou Jasmine, quando ele saiu do quarto. – Vai salvar essa coisa e não seus pais!!?
Sentia a garganta doer pela fumaça e lutava para não olhar a mãe. Sentia lágrimas descerem sem parar enquanto ia para a saída.
— Vai salvar esse monstro e não a gente!??
Naquele instante, algo mudou dentro de Ozy. Lembrou do que os dois iriam fazer com a criança em seus braços e de como foi tratado. Por ser contrário, virou-se vendo a cara de pavor da mãe, e disse:
— Os verdadeiros monstros aqui são vocês! – Correu, sem esperar uma resposta.
Ainda conseguia ouvir os gritos da mãe chamando, e não duvidou que eles iriam assombrar seus pensamentos por toda sua vida. Manteve o passo pelas cenas macabras que via.
Ozy nunca imaginaria que tal barbárie acontecia ao mesmo tempo na Vala, mas diferente da Cova, onde havia Corvos, lá era um massacre unilateral. Passou por um gueto onde um homem se arrastava sem uma das pernas e pulou sobre ele.
Voltou devagar a respirar normalmente, mas o suor empapava toda sua roupa. Somente corria, ignorando a dor na lombar e a garganta que ardia. Sem perceber, havia chegado na rua que Gessica virou mais cedo.
A poucos metros após a esquina, o corpo dela estava estirado com um dardo cravado em sua garganta. Ozy sentiu tudo girar, mas se manteve em pé pela irmã. A amiga mal havia sumido de sua vista e morrera logo em seguida. Um grito de ódio escapou de sua boca, ecoando.
Corvos e pessoas comuns junto aos invasores com suas montarias, enchiam toda a rua, que fedia a sangue. Ozy olhou para Gessica lembrando que não fazia nem quinze minutos que planejavam fugir, quando um movimento chamou sua atenção.
Preso embaixo de uma hiena, um rapaz da mesma idade lutava para sair. Ozy foi em direção a ele sem perceber, segurando sua irmã em uma das mãos e na outra a faca.
— Por quê? – As palavras saíram arrastadas.
O rapaz se assustou vendo-o, mas sorriu logo em seguida. Seus dentes estavam sujos de sangue.
— Por quê? – disse Ozy, novamente.
Algo em Ozy deixou o rapaz nervoso, o que fez seu sorriso esnobe sumir e ele dizer:
— Precisávamos de suprimentos e moedas.
Ozy ficou perplexo. Era somente comprar um ou roubar. Não precisava daquele massacre. Lembrou-se da movimentação estranha dos Corvos mais cedo e entendeu que eles sabiam de algo e mesmo assim não fizeram nada para evacuar a cidade. Desceu a lâmina contra o outro sem parar, escutando os gritos de dor, e então nada, mas manteve os movimentos rasgando a carne.
O choro do bebê o fez voltar a si. Estava sujo de vermelho e a irmã também, consequentemente. Ainda segurando a faca, correu para o jequitibá. Escondendo-se, somente escutava os sons e cheiros da destruição. As horas se arrastavam e ao passar de cada uma delas, o silêncio era maior, e então, nada.
Manteve-se alerta até perto do fim daquele dia. Voltou à Cova e se deparou com a devastação. Outras pessoas conseguiram sobreviver e elas pareciam desoladas, algumas estavam claramente sem nenhuma vontade de continuar vivendo. Viram-no chegar com assombro. Só mais tarde entendeu o porquê. Um rapaz segurando uma faca e um bebê coberto de sangue, era, no mínimo, chocante.
— Quem é você? – indagou uma senhora, com um longo corte na testa.
Ozy estava prestes a falar o nome quando parou. Ao ver toda a dor, sofrimento, junto ao descaso dos Corvos, e sentindo raiva de sua impotência diante dos acontecimentos anteriores, da perda de sua melhor amiga, da morte de seus pais, ele não iria mais ficar quieto, não iria nunca mais abaixar a cabeça e aceitar como aceitara, ter a irmã levada embora quieto. Ele precisava fazer algo por aquelas pessoas, iria fazer delas a sua família. Viu uma oportunidade de não ser mais um na multidão e agarrou a oportunidade sem pensar duas vezes. Olhou para o bebê tendo uma ideia.
— Pode me chamar de...
— Irmão! Acorda, Irmão – chamava uma voz infantil.
Grande Irmão abriu os olhos preguiçosos enquanto esticava o corpo que estalou em diversos lugares. Estava ficando velho. Voltou-se à irmã que havia tirado a máscara de ferro, mostrando o mesmo rosto sem nariz e orelhas. Os grandes olhos verdes estavam preocupados com ele.
— Estava tendo um pesadelo? Se mexia sem parar enquanto dormia, então resolvi te acordar. Espero que não esteja bravo.
— Não estou – respondeu, sentando-se. – É como disse, tive um pesadelo. – E então falou baixo: – Estava mais para uma memória antiga, na verdade


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