Capítulo 5 - As Pequenas Luzes

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A pomada tinha um aspecto arenoso. Rafaelo a aplicava de forma cuidadosa no canto da boca outra vez. O corte ardia um pouco. Ele esfregava a ferida devagar, desejando que ela se curasse da noite para o dia. Olhando o próprio reflexo, não se importou em estar com o cabelo bagunçado. Se estivesse na escola ou na rua, o pequeno topete estaria impecável, mas na suíte de seu quarto a cobrança com a vaidade era reduzida, embora jamais nula.

Apaixonar-se por si mesmo na frente do espelho era um hábito que Rafaelo reproduzia, muitas vezes sem perceber. O porte atlético, resultado de exercícios físicos intensivos, combinava com a altura e fazia os músculos se distribuírem de forma simétrica, não havendo exageros. Forçar o bíceps e admirar a curva daquela região do braço era algo tão rotineiro quanto beber água.

Depois de alguns minutos idolatrando a própria imagem, tornou a mirar a boca cortada e a bochecha roxa, do mesmo lado do corte. A cor se misturava com a barba rala.

Por pouco o soco que levara mais cedo na escola não atingira um de seus olhos. Ele pensou que se aquilo tivesse acontecido a enorme mancha roxa iria se juntar ao castanho-escuro dos olhos e parecer ainda mais desarmonioso e repulsivo.

Mais cedo, naquele dia, Rafaelo tinha ficado um pouco além do horário, conversando com Cássio e Manolo, amigos e cúmplices que estudavam na mesma classe. Quando saíram da sala onde estavam, caminharam por um dos corredores que cercavam o pátio do colégio e cruzaram com um menino que estava sozinho. Não havia qualquer outra pessoa por perto. Nada de alunos. Nada de inspetores. Como de costume, Rafaelo não perdia a oportunidade de pisar em alguém e o menino, sempre alvo dos três, não escapara daquela vez também.

O que o trio não esperava era que o corpulento garoto fosse reagir. Sendo três contra um, Rafaelo ficou admirado em ver como o garoto revidara, resultando para si um corte no canto da boca e uma bochecha roxa. Cássio interveio no último instante, girando a própria mochila no ar para separá-los. Nenhum dos três amigos soube o quê, naquele objeto, poderia ter causado o arranhão na lateral da barriga do garoto gordo e lento, mas foi suficiente para desviar o golpe que acertaria o olho de Rafaelo, atingindo apenas a bochecha.

O golpe da mochila também foi decisivo para que os quatro se afastassem, fazendo com que Rafaelo caísse no chão com a força do soco, Cássio se desequilibrasse no giro da mochila e o menino atacado cambaleasse ao receber o golpe. E naquele momento, o único garoto que sobrara, Manolo, estava confuso demais para saber o que fazer. Quando raciocinou melhor, tudo o que fez foi gritar para que os três saíssem dali e deixassem o menino para trás.

Foi o que fizeram. Se apressaram em fugir e antes de descer as escadas que levavam ao pátio, Rafaelo deu uma última olhada no menino, deixando claro para os dois que a briga continuaria em um outro momento. Possuído de raiva, o atlético garoto atravessou o pátio com os amigos, colocando a mão na boca diversas vezes para estancar o pequeno sangramento. A bochecha latejava, mas ainda não estava roxa.

— Cara, que gordo maluco! Por que ele resolveu reagir? – perguntou Manolo, assustado.

— Ele nunca fez isso! Ainda bem que eu joguei a mochila em cima dele – continuou Cássio. – espero que tenha aprendido a lição.

— Ele ainda vai aprender a lição – disse Rafaelo, ríspido. – não sei o que deu naquela bola para me enfrentar desse jeito, mas ele não vai fazer de novo.

Apesar de ainda estarem se recobrando do susto, Cássio e Manolo riram com o comentário.

— Aquele gordo me irrita – disse Cássio.

Os Descendentes e a Ferida da Terra (Livro Um)Onde histórias criam vida. Descubra agora