Capítulo 21 - Um Contra Cem

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Nos últimos dias a mente e o coração de Higino só tinham espaço para dois tipos de sentimento. O primeiro era aquele mais fácil que se instala nos seres humanos. Chegou sem fazer questão nenhuma de ser silencioso. O medo era algo natural naquele corpo magricela de um metro e setenta e sete.

Ele já estava acostumado, embora fosse um pouco diferente desta vez. Ele sempre sentiu medo pelas situações que conhecia. Estar ali, no entanto, caminhando em um outro continente era assustador.

Era como se o desespero espreitasse em cada sombra, enviando sinais de que poderia se fazer presente a qualquer momento. Pelo motivo mais simples que fosse.

O segundo sentimento era a raiva. Talvez um misto com fúria. Ele não sabia ao certo definir. Sentir aquilo era novo para o garoto. Ele não estava sabendo lidar com as reações de seu corpo. Percebia-se tremendo às vezes, pensando em como sua mãe teve a vida covardemente roubada.

Nesses momentos o coração palpitava desenfreado e os punhos se fechavam. Nunca chorara tanto, exceto quando Caroline partira. Ainda assim, as lágrimas que caíam eram menos de tristeza e mais, bem mais, de inconformidade. Não era justo para ele alguém tão bom partir sem chance de se defender.

Por um momento ele pensou que recebera a herança correta. Manipular a água em estado sólido. Gelo. Era assim que se sentia no meio daquele turbilhão: um ser humano frio e gelado. Um pouco indiferente desde que descobrira a verdade.

Era confuso acolher os dois sentimentos ao mesmo tempo, visto que um costuma anular o outro. Mas Higino estava ali, de pé, convivendo com ambos. De certa forma o medo era seu mórbido amigo e a raiva estava sendo convidada voluntariamente para ser mais uma companheira naquele círculo de amizades sensoriais.

Caminhava alguns passos atrás de Debas e àquela perspectiva o general parecia ainda maior. Suas costas largas e o andar pesado intimidariam qualquer um.

— Para onde vamos? - perguntou ao atravessar o portal que ficava no fim do caminho entre as portas de travessia.

— Para um lugar que tem muita água, garoto. Não é o seu elemento, afinal?

Higino não respondeu. Um passo a mais e estava em um amplo mezanino, de chão forrado com tábua corrida escura e um corrimão que permitia ver parcialmente o primeiro andar. Um primeiro pavimento que ele já tinha visto antes.

— Casa da Costa?

Debas riu com vontade. A risada grave ecoou pela casa vazia. O cheiro leve da maresia passeava pelo ar e deu ao garoto uma sensação familiar. O fez pensar nas horas que costumava passar no fundo de sua piscina, refletindo sobre a vida enquanto a água sequer movia-se.

E só ali, com o olfato entorpecido, percebeu que nunca tinha feito isso debaixo de água salgada e sentiu uma enorme vontade de se atirar no mar que ficava lá fora.

Seu devaneio foi interrompido pelos sons dos passos do general afundando nos degraus de madeira que levavam ao primeiro andar. Higino apertou o passo para seguir Debas, que descia a escada fazendo sinais apressados para que o garoto descesse também. Higino reparou antes de prosseguir que algumas portas existiam naquele andar, mas todas estavam fechadas.

— Suas olheiras estão enormes - disse o homem ao virar-se. - vou te dar uma dica: canalize sua tristeza para aprimorar suas técnicas e você vai se sentir melhor.

— Como se fosse fácil. Se eu canalizar o que estou sentindo agora, resfriaria até mesmo o sol.

— Hohohoho, isso é impossível, garoto. Quero dizer, não resfriar o sol. Mas um ser humano fazer isso. Nem a custo da sua própria vida você teria vitalidade suficiente para tanto.

Os Descendentes e a Ferida da Terra (Livro Um)Onde histórias criam vida. Descubra agora