O renascimento

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Todos os dias, quando ligamos a televisão, vemos acidentes de carro horríveis passando nos noticiários. Muitas das vezes nos pegamos imaginando o que faríamos caso um de nossos familiares se acidentasse, ou se isso acontecesse conosco... nos pomos no lugar dos que sofrem para tentar simular a dor.

Temos que ter a consciência de que nem todos os acidentes passam na televisão. Enquanto você lê isso, alguém, provavelmente bêbado, está atropelando pessoas, ou batendo em postes, ou descendo uma ladeira feito um louco.

A história dele não passou na televisão. Um caso de imprudência adolescente.

Noah dirigia à cento e oitenta por hora numa pista de cem. Estava embriagado e na companhia de sua namorada, Marcy. Os dois riam enquanto cantavam músicas escandalosas que berravam dos alto-falantes do carro. Botavam a cabeça para fora e gritavam os famosos "Uhu"s da liberdade juvenil. Os dois tinham acabado de sair de uma festa do colegial que comemorava o início do último ano na escola.

Era três horas da manhã quando Noah deixou Marcy em casa. Três e quinze, quando o garoto pegou a principal à toda. Três e meia, quando ele se chocou contra uma árvore. Cinco da manhã, quando a ambulância chegou e sete, quando ele estava no hospital e sua família chorando ao lado de sua maca.

As pessoas nunca imaginaram o que uma pessoa que sofre um acidente de carro sonha? Quer dizer, depois da imensidão escura, é claro. Bom, não sei quanto aos outros, mas sei o que Noah sonhou. Sonhou com sua vida. Com o que aconteceu e com o que planejava acontecer.

Seus planos eram como os de qualquer garoto que deseja fazer uma faculdade. Estudar como um condenado, ter um bom emprego, se casar com a namorada do ensino médio, ter uma família, ter uma casa espaçosa com piscina e uma vista para o mar - O que para mim é meio estranho. Quer dizer, por que ter piscina em casa se tem uma praia logo ali?!- e morrer bem velhinho.

Sempre planejador e sonhador. É, senhor Noah, parece que a realidade bateu em sua porta... ou em seu carro.

Mirian, mãe de Noah, estava sentada no quarto de hospital lendo uma revista, quando ele finalmente acordou. Havia passado duas semanas desde o acidente e, ao longo desse tempo, aquela fora a primeira vez em que ele abriu os olhos.

Poderia ter sido tão lindo, o despertar do garoto. Sua mãe poderia ter o visto de olhos abertos, corrido até ele e o abraçado com força. Ambos falariam que se amam e Mirian diria que tudo ficaria bem. Entretanto, algo atrapalhou tal cena tão comovente: o tubo que fora posto dentro da boca de Noah.

Assim que retomou a consciência, Noah começou a tossir incontrolavelmente. Seus olhos se arregalaram e a coloração de sua pele começou a tomar um tom vermelho.

Mirian, ao notar o que acontecia, correu até seu filho e colocou as mãos em seu rosto, desesperada.

-Meu Deus! Noah! Filho!! - Ela exclamou e correu com os olhos pelo corpo do garoto, que tremia e se contorcia.

O garoto já estava sentindo falta de ar, quando sua mãe cai de joelhos no chão e começou a orar, ao invés de correr e pedir ajuda de algum médico ou enfermeira. Talvez até uma faxineira fosse mais útil do que clamar pela misericórdia de Deus naquele momento.

A máquina dos batimentos cardíacos começou a apitar com mais frequência e, a cada segundo, os batimentos do garoto dobravam, fazendo com que o barulho da máquina soasse como um alarme. Noah estava morrendo asfixiado.

-DEUS, TENHA PIEDADE DE MEU FILHO!

As mãos de Noah agarravam as cobertas e as puxavam por agonia. Ele estava sem ar, chegando a uma coloração roxa. Seus pés arrastavam na cama e seu tronco contorcia-se para todos os lados possíveis, tentando achar alguma forma de respirar.

De repente, a porta abriu-se num estrondo e enfermeiros e médicos adentraram correndo o quarto. Dois deles socorreram o garoto, enquanto que os demais arrastaram Mirian para fora, ainda que ela se debatesse e berrasse, pedindo para ficar.

...

Abrindo os olhos, Noah encontrou o teto branco do hospital. Ele respirou fundo e mexeu-se na cama. Engoliu a saliva e desceu seu olhar, encontrando oito pessoas que o encaravam.

O garoto sentia uma ardência incômoda na garganta, como se algo tivesse sido arrancado às pressas dali. Algo como suas cordas voais.

-Querido. - Sua mãe falou colocando a mão em seu pé descoberto. Ela sorria enquanto acariciava seu dedão, virou seu rosto para cima e fechou os olhos, fazendo uma oração silenciosa.

Uma informaçãozinha sobre os pais de Noah que você certamente já notou: eles são religiosos ao extremo. Cristão de carne, osso, sangue, espírito e o que mais tiver.

Ainda grogue, o garoto apertou os olhos com força e forçou-se para sentar na cama, mas não conseguiu. Ele tinha a testa enfaixada, assim como boa parte dos braços e abdômen.

-Não faça força, meu bem. - Disse sua mãe ao caminhar até seu lado e sentar-se na beirada da cama, acariciando seu rosto.

Os olhos de Noah voltaram a percorrer o quarto, identificando quem estava lá. Sua mãe, seu pai, seus avôs e avós, tanto maternos quanto paternos, seus dois irmãos -Drake, o mais novo, e Mark, o mais velho -, sua tia Patty e um médico.

-Mãe... - Noah tentou falar, mas estava fraco. Sua voz saiu rouca, fraca e sofrida.

-Não, não tente falar agora. Está muito cansado, meu querido. Precisa descansar, tudo bem? Não sabe o quanto fiquei preocupada e o quanto eu orei para que Deus pusesse as mãos sobre você e o protegesse, para que tivesse piedade. E ele teve, você está bem ag...

-Mãe. - Falou Noah novamente, interrompendo Mirian. Sua respiração era lenta e seu cérebro funcionava de uma forma lesada, mas, ainda assim, ele notou que havia um problema com ele. Algo não estava certo, não estava funcionando.

Mirian acariciou sua bochecha com o polegar e comprimiu seus lábios, passando a ficar em silêncio. Nenhum dos demais na sala falavam. Era como se já estivessem cientes de que não havia muitos motivos para se alegrar.

-Mãe...- Repetiu Noah. - Eu... não sinto minhas pernas.




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