De amigo a cúmplice

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—E aí? Como está?

—Como um saco de lixo que cai do caminhão.

Os dois garotos estavam no consultório de fisioterapia. Matheus vestia suas roupas de sempre, a calça branca e o jaleco, e Noah usava calça jeans e suéter roxo. Ainda era dezembro, embora já estivesse bem perto de acabar. Todos já festejavam o ano novo, desejando felicidades e prosperidade para amigos e familiares, enquanto que a única coisa que Noah desejava era que tudo o que estava acontecendo fosse mentira.

Matheus caminhou pelo consultório, observando o amigo deitado, e suspirou, virando-se e pegando o celular. Seu supervisor não estava ali, então ele colocou uma música para tocar. Nada muito pesado ou perturbador, apenas um som acústico sem letra.

—Eu até poderia dizer para você não ficar assim e tudo o mais, mas não vai adiantar. Eu também ficaria arrasado se Anthony me traísse. — O garoto franziu o cenho e virou-se para Noah, estalou os dedos e caminhou até se por ao lado do leito. — Para dizer a verdade, eu ficaria muito puto. Lanharia a cara do infeliz até que ficasse irreconhecível. Mas cada um tem seu jeito de encarar as coisas.

—Eu gostaria de conseguir encarar as coisas como você...

—Qual é seu signo, mesmo?

—Câncer

—Ah... Tadinho.

Matheus segurou as pernas do menino e começou a fazer os procedimentos padrões. Esticar, dobrar, girar, movimentar. O menino era ótimo no que fazia, mesmo que fosse apenas um estagiário.

—O que você precisa é de uns bons filmes pornôs. Só que de hétero. Seu pinto ainda funciona, né?

—Quê? Que pergunta mais besta!

Matheus soltou uma risada.

—Calma, estressadinho. É só uma piada. — Matheus virou o rosto olhar o de Noah. — Estou tentando te colocar para cima. Quero que se sinta bem... — Ele passou a mão nos cabelos cacheados e coçou o olho esquerdo. — A final, sua recuperação depende de seu psicológico, também. Agora, vamos lá, hora de você andar.

Com a ajuda de Matheus, Noah sentou-se e puxou suas pernas para fora da cama. Lentamente, colocou os pés no chão e apoiou-se no amigo para que conseguisse alcançar o andador.

—Não se esqueça de colocar força nas suas pernas. Vou te dar um tapa a cada vez que vir seus bíceps forçarem. — Matheus colocou o menino entre as barras de alumínio, onde ele apoiou-se. Então, o estagiário largou Noah, deixando-o em pé sozinho. — Não se preocupe em cair, estou aqui, logo atrás de você.

Mesmo que as pernas de Noah tivessem voltado a responder algum tempo atrás, só sua sensibilidade havia voltado de forma significante. Os movimentos ainda eram falhos e fracos e, por isso, o exercício exigia muito do garoto. Seus dentes rangiam e olhos fechavam. A expressão contorcia-se enquanto que um dos pés arrastava-se para se por a frente do outro. Os joelhos, trêmulos, pareciam estar carregando toneladas de quilos. Ele fraquejou algumas vezes, mas Matheus estava logo atrás, com suas mãos preparadas para acudi-lo e olhos atentos a cada movimento.

—Os bíceps! Quer levar um tapa? — Avisou Matheus, quando viu que seu paciente estava colocando peso demais nos braços.

—Não está dando... —O rosto de Noah estava vermelho de tanto o esforço que ele fazia. As pernas começaram a tremer e o corpo a reclinar. —Vou cair. 

Então, Matheus envolveu a cintura do menino com os braços e colou seu corpo por trás, o dando suporte. 

—Só faltam mais dois passos. Você consegue, vamos.

Rangendo os dentes, Noah arrastou penosamente seu pé esquerdo para a frente e o firmou no chão. Ainda com mais dificuldade, o menino puxou o direito, mas, então, não aguentou. Seu corpo desabou para a frente e nem seus braços foram capazes de suportar o peso. No entanto, como havia prometido, Matheus estava lá. o segurando. Com força, o estagiário abraçou a cintura do menino e o colocou de pé novamente.  De lábios comprimidos, ele o levou até a maca e o deitou de bruços. Virou-o de barriga para cima e ajeitou suas pernas sobre a cama.

—Primeira coisa: Você engordou. Está proibido de cear no ano novo, pois parei de ir na academia justamente para não pegar peso. — Noah conseguiu rir. —Segunda coisa: Parabéns, você completou o percurso pela primeira vez!

—Uhu! — Noah ergueu o braço, em comemoração. Mas logo o abaixou, deixando as mãos sobre a barriga. Ele encarava o teto e sua expressão foi desfazendo-se, até que se entristeceu e seus lábios curvavam-se para baixo. 

—Eu só espero que esteja com essa carinha aí porque nosso time de beisebol perdeu o campeonato ontem. 

—Sinto saudade dela...

—Ai, meu caralhinho...

—É sério, cara. Estou com ela faz três anos.

—Estava. — Matheus o corrigia.

—Hm? — Noah ergueu uma sobrancelha.

—Que foi? estava, né? Você não vai continuar com ela depois do que ela fez, eu não permito. Amor próprio, meu amigo!

— Que seja! Mas foram três anos, quase quatro. É muito tempo... Não quero perdê-la assim.

Matheus sentou-se na beirada da cama. Analisou o corpo e rosto de Noah, até que colocou a mão sobre o ombro do amigo.

—Pelo que me contou... pelo jeito que ela estava agindo com você, te ignorando e tudo o mais... Você já perdeu ela faz tempo. Só que não aceitou e ainda não aceita... Mas uma hora você terá que aceitar. E superar.

Noah suspirou.

— Mas eu nem sei se é verdade... Tudo bem que ela mentiu para mim e é muito suspeito não estar na casa da avó... Mas nada prova que ela me traiu.

—É... bom, sim, mas ela ainda mentiu... E não vejo porque ela mentir sobre isso sem ter algo grande a esconder. Tipo, uma merda grande mesmo. — Matheus arregalou os olhos e apontou para noah. — Já viu em sei o que você fez no verão passado? E se ela matou alguém, viado?

— Não acho que seja isso... Mas seria bem melhor do que me trair.

Com os olhos estreitos, Matheus encarou Noah reprovando o que o menino disse, e balançando a cabeça levemente de um lado para o outro.

—Tsc tsc tsc...

—Que foi, não foi você que me disse para ter mais amor próprio? A questão é: Ela pode não ter me traído, de fato.

—É. E como você vai fazer isso? Perguntando a ela? "Oi amor, vem cá, você andou me traindo nas férias? Só por curiosidade, risos"

—Claro que não, besta. Vou investigar.

—Ahhh, claro. Porque você vai ser muito ninja andando de cadeira de rodas por aí, né?

—Não enche. — Noah tentou acertar um soco em Matheus

—Só estou falando que você não vai ter muito sucesso na parte de "se manter nas sombras". Precisa de ajuda. Pelo menos por enquanto.

—Então está se oferecendo para me ajudar?

—Quê? — Matheus ergueu uma sobrancelha.

— Ué, você está aí todo cheio de mimimi, reclamando do meu jeito de espionar. Então me ajude, se acha que preciso.

Matheus respirou fundo e coçou os olhos com as mãos.

— Pra quê fui falar? — Então ele voltou a olhar para Noah, e apoiou as mãos na beirada da cama. — Tudo bem. Se isso vai te fazer melhor, então eu te ajudo. Mas só se você conseguir completar o percurso de novo. Agora, tire esta bunda flácida da cama e bora andar.

—Minha bunda não é flácida. 

—Eu sei, já apertei.

—O quê?!

—Foi mal. — Matheus riu.

As vicissitudes da vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora