CAPÍTULO 34 - O RESSURGIMENTO DA TERRA

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A NOITE É A MÃE DE TODOS OS SEGREDOS, sob o seu véu negro movem-se aqueles que planejam em sua segurança, seu abraço é precioso, porém não é eterno, somente aos predadores e aos que vivem nas sombras do mundo é dado o seu conhecimento e o seu conforto, desde o início de sua caminhada no Aiyê, os seres humanos evitam estar em lugares ermos e na noite escura, pois enquanto as criaturas e entes mágicos e sobrenaturais não precisam da luz, os humanos utilizam-se do fogo para espantar o mal ou simplesmente defender-se.

Naquela hora específica, onde a noite está alta e espessa como uma muralha, as árvores destacavam-se contra o céu estrelado, encimado pela Lua crescente que trazia seu brilho mortiço e amarelado para as sombras. No meio de suas asas, pousadas em um Iroko velho e retorcido que oprimia as outras árvores ao seu redor, as cinco Mães Primordiais estavam caladas esperando o momento. Seguravam-se nos galhos com suas garras que apertavam a madeira, de seu corpo humano existiam apenas os seis, o sexo e a parte de cima da cabeça, onde seus olhos atentos espreitavam a escuridão. Todo o resto eram asas, penas escuras, brancas e cinza. Asas enormes que vez ou outra abriam-se em pantomima e bicos negros que reluziam as estrelas e a Lua.

Quando o vento lhes trouxe a resposta, suas asas flutuavam num balé suave e pousaram aos pés do enorme Iroko que tinha raízes enormes que se espalhavam pelo chão, como veias grossas. Uma a uma, suas asas recolheram-se. Dava para escutar seus ossos, suas penas e peles encolherem-se, como gravetos secos estalando ao fogo. Suas mãos surgiram, com unhas escuras e longas, afiadas como a água. Ficaram em círculo, deram-se as mãos, pois tudo que era redondo lhes pertencia, no centro um fogo azul claro rodopiou levantando-se do chão, sobrenatural, sem fonte aparente. Adôs (cabaças enfeitadas) estavam aos pés de cada uma, moviam-se como se fosse ovos que alguma ave estivera chocando, repletos de vida. Um buraco jazia no chão, a mais velha pôs água, mel, azeite de dendê, abriu a sua cabaça que emitiu um som oco, como se o vento viesse lá de dentro  uma respiração, colocou sua mão esquerda e polvilhou com o pó negro que ela continha o buraco. Voltou a sua posição inicial. Suas irmãs a imitaram uma a uma e quando terminaram cantaram seus louvores arcanos, numa voz que lembrava onomatopeias.

O tempo dobrou-se, o silêncio foi engolido por ele e a luz tomou o lugar da escuridão como uma bolha assimétrica, irregular e pulsante. Cheiros de terra molhada, folhas podres, nascimento e morte, além de sangue e esperma tomaram conta do ambiente. A terra foi cuspida como se minhocas estivessem alimentando-se dela, sendo jogada lentamente como água fresca de uma nascente, o montículo aos poucos cresceu, espalhando-se e chegando ao tamanho de uma pessoa deitada. Movia-se viva, revolvendo-se sem fim, sendo moldada como uma mulher, seu rosto, cabelos, seu corpo, braços, pernas, os seios apareceram daquele monte que sustentava a vida no Aiyê, lembrando a criação dos homens, num tempo esquecido.

A mulher que era criada na terra estava deitada imóvel. Seus olhos abriram-se e fitaram o céu estrelado acima, levantou-se, terra, areia e pedrinhas que desmoronavam-se e iam se transformando em carne, as vozes das Iyá Mi elevaram-se em um louvor tão antigo e ininteligível para os sentidos, talvez quem o escutasse, se sobrevivesse, alcançaria a insanidade.

Totalmente em pé no centro do círculo ancestral, a Primeira entrou no Aiyê: Oduá. As cinco ajoelharam-se perante a Mãe de Todas, que dera existência a elas e a tudo e adoraram-na em comunhão num clamor de êxtase uníssono. O Sorriso da mulher era benevolente, fixo e inexpressivo, seus olhos eram fugazes e totalmente negros, um manto de poeira se agregou a seu corpo cobrindo sua nudez e transformando-se em um tecido negro, que a abraçou. Metade de seu rosto era coberto com uma máscara, que parecia saída de sua própria pele, grossa, o seu olho esquerdo era oco e profundo, um abismo negro de intenções.

_ Após tanto tempo aprisionada, fora de meus atributos, sinto uma vontade enorme de agarrar a vida e abraçá-la como me foi negado desde as auroras. É chegada a minha hora!

Orun - Aiyé: Guerra Santa #Wattys2016 (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora