Desculpa

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Dona Flávia bateu na porta pouco depois com o nosso jantar. Ela trouxe dois Cup Noodles prontos, um de frango com requeijão e outro de galinha caipira, e talheres. Ela deu o de frango para mim e entregou o de galinha para Sara. Ela nos disse para não derrubarmos nada no chão senão iríamos ter que limpar (mas isso nunca era realmente verdade; sempre que derrubávamos, ela nem nos deixava tocar no pano).

Eu já tinha dormido lá tanto quanto na minha casa e pode parecer um exagero, mas não é. Sara não dormia tanto na minha casa, pois eram os meus pais que viajavam demais, então no começo eu dormia lá para não dormir sozinha em casa, só que meus pais não acharam que isso poderia se tornar um hábito. Meus pais eram escritores e viajavam demais quando eu era pequena. Quando fiquei mais velha eles pararam com as viagens para me "ver crescer" e minhas idas à casa de Sara diminuíram drasticamente, mas não acabaram.

Começamos a comer e Dona Flávia ainda estava lá falando com Sara sobre o horário que seu pai chegaria. 

Dona Flávia é a mãe que muitos desejam ter. Ela é extremamente liberal, mas nunca negligenciou Sara e sempre fez de tudo por ela e Nicolas. O pai de Sara chamava-se José Roberto, mas todos o chamavam de Beto e eu também, apesar de fazer questão de chamar Dona Flávia de "dona", o "seu" antes do nome dele não combinava e ele também não gostava muito.

– É cedo ainda, queridas, se quiser que eu traga o videogame para cima para jogarem um pouco não tem problema...

– Eu vou jogar - ele apareceu do nada se encostando ao batente da porta. – Então nada de videogames pra minha irmãzinha bizarra.

Aquele tom sarcástico dele fez voltar toda a raiva que eu tinha empurrado para dentro momentos antes. Olhei para meu Cup Noodles e tentei me concentrar naquele cheiro maravilhoso de requeijão derretido. Eu havia prometido para Sara e eu não pretendia descumprir minha promessa que infelizmente envolvia "não discutir" e "não bater".

O único modo de evitar isso era não dirigir a palavra para ele e tentei enterrar toda a minha irritação.

– Não chame sua irmã de "bizarra", Nicolas! – Dona Flávia reclamou com as mãos na cintura. – Tudo o que disse já não foi o suficiente?

– Ah, por favor, mãe – ele revirou os olhos. – Como se gente que se veste assim tivesse algum sentimento. Para falar a verdade, fico surpreso que Roxy não deixou você no momento em que te viu.

Escutar o meu nome com aquele tom sarcástico misturado com um pouco de pena irritou-me de tal forma que apertei o copo de papelão na minha mão com força demais. Ele transbordou água quente caindo no chão.

– Merda! – eu exclamei irritada e suspirei. – Sara, pega aqui para mim, vou buscar um pano na lavanderia – Sara pegou o copo da minha mão, enquanto eu me levantava.

– Deixa que eu... – Dona Flávia começou.

– Disse que se derramássemos era para limpar, certo? – eu a interrompi e olhei-a com o meu melhor olhar suplicante. – Sei onde ficam os panos.

Ela percebeu que eu não estava apenas querendo limpar, mas também sair de perto dele.

Dona Flávia soube de tudo o que aconteceu no sexto ano e como eu defendi Sara. Sara não queria contar, mas eu não a levaria para casa se ela não me prometesse que iria contar, acabei a convencendo e contamos as duas juntas. Sara contou para sua mãe como eu mordi os caras tentando aliviar o clima, mas sua expressão era séria demais.

Foi, talvez, a primeira vez que vi sua mãe tão séria. Ela pegou o rosto de Sara e deu um beijo longo em sua testa e a abraçou, assim que a soltou ela me puxou para perto e me abraçou tão forte que eu achei que iria sufocar. Ela ficava repetindo para mim 'obrigada' ou 'muito obrigada' o tempo todo e Sara teve que pedir várias vezes para que ela me soltasse.

Também foi assim que descobriu sobre o meu temperamento um pouco explosivo e, não tenho certeza, mas acho que Sara contou algumas situações em que estive prestes a perder a calma. Desde então Dona Flávia passou a perceber quando eu começava a ficar irritada. Não notava tão facilmente como Sara, mas ainda assim percebia.

– Sem problemas – ela sorriu e assentiu com a cabeça.

Sai do quarto passando por ele tendo certeza de trombar com força e seu ombro. Escutei um "ai" atrás de mim e disse a mim mesma que teria que me contentar com apenas aquilo. Fui à lavanderia e peguei o pano fazendo um pouco de hora antes de voltar para o quarto. Eu esperava que ele tivesse ido quando eu chegasse ao quarto, mas eu não poderia estar mais errada.

Quando subi as escadas escutei um baque alto e terminei os degraus subindo de dois em dois. Tive uma bela visão de Dona Flávia fora do quarto cobrindo a boca com a mão. Isso não poderia ser coisa boa, corri para a porta do quarto e não acreditei no que estava vendo.

Ele estava com a mão levantada e Sara caída no chão se protegendo com os braços.

Eu pedi desculpas a ela mentalmente antes de perder totalmente o controle. 

Na verdade, eu não lembro se pensei qualquer coisa antes de partir para cima dele.

Minha cabeça não estava funcionando direito quando eu agarrei a blusa dele por trás e o virei para mim, desferindo um soco bem no meio da sua cara. Ele caiu no chão perto de Sara que soltou um grito e se encolheu no canto enquanto eu sentava em cima da barriga dele e socava sua cara. Devo ter dado uns setes socos fortes antes de voltar a escutar. Antes de voltar a mim.

Minha respiração estava pesada e meus punhos vermelhos com sangue do nariz dele. Ele me olhava aterrorizado e eu olhei para as minhas próprias mãos. Vendo o nariz dele agora, parecia um pouco torto, talvez estivesse quebrado. Eu levantei meus olhos e Sara chorava copiosamente no canto entre a escrivaninha e a cama. Eu me levantei e dei um passo na sua direção.

– Sara, eu...

– Cala a boca! – ela se levantou e com aqueles olhos vermelhos ela me deu um tapa na cara. – Você me prometeu!

– Sara...? – eu estava atônita. Eu sabia que ia a deixar assustada, com medo e tudo mais... Mas a expressão dela... Por que parecia estar com raiva de mim?

– Como pode fazer isso? Ele é meu irmão! – ela gritou e o ajudou a levantar.

Aquilo para mim não parecia real, talvez eu ainda estivesse sob o efeito da adrenalina e minha mente estava fazendo aquilo comigo. Mas eu não sou tão burra a ponto de me enganar desse jeito.

– Vá embora Roxy! – ela gritou.

– Ele te bateu Sara! – eu gritei de volta.

– Eu não me importo! Por que sempre estraga as coisas?!

Com aquelas palavras eu desabei. Mental e fisicamente. Meus joelhos fraquejaram e eu cai no chão olhando para ela. Seu olhar vacilou um pouco e eu pude ver o entendimento passar por eles. Ela tinha a expressão mais assustada que eu já tinha visto.

– Você... está chorando? – ela soltou o braço dele devagar. – Ah, meu Deus – seus olhos derramavam mais e mais lágrimas. – Roxy...

Dona Flávia tocou meu ombro e eu me retraí instintivamente. Dispensei qualquer toque, eu não queria escutar nada muito menos ser tocada.

– Eu só estava tentando te defender – minha voz saiu rouca e baixa. – Mas eu já entendi. Desculpe.

Sob o olhar aterrorizado dela eu peguei minha bolsinha e abri o armário.

– Roxy, o que está...? – Dona Flávia começou a perguntar.

– Nunca mais vou aparecer aqui – agarrei todas as roupas que eu tinha ali, graças a Deus não eram muitas. Virei-me para olhar Sara. – Nunca mais apareço na sua frente – olhei para Nicolas e o rosto ferrado dele. – Eu não ligo mais, faça o que quiser com ela.

Sai dali passando por Dona Flávia andando, mas assim que cheguei às escadas passei a correr.

Eu morava a vinte minutos andando da casa dela, mas de ônibus era muito mais rápido e ele já estava ali. Peguei e subi a tempo de ver Sara sair correndo pela porta. O que fosse que quisesse falar não me importava mais.

Eu não me importava mais.

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