Seu irmão

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Conheci Sara Morgan no primeiro ano do Fundamental I, foi a primeira amiga que tive em toda a minha vida. Até aquele momento nem com crianças no parquinho eu interagia. Pois é, me chamar de antissocial naquela época era pouco. Não vou realmente entrar em detalhes sobre este período parado e chato da minha vida já que o ponto aqui é como minha vida mudou quando a conheci.

Sara Allison Morgan, minha melhor amiga, não era muito diferente de mim até entrarmos no colegial. Usávamos o cabelo longo e o mesmo estilo de roupa - camisetas e jeans. Sara tinha o cabelo bem mais claro do que o meu, acho que posso dizer que seria um loiro sujo, usando uma franja lateral. Os meu fios, por sua vez, ostentavam um comum castanho claro; minha mãe sempre quis me fazer usar uma franja, mas meu ódio por cabelo tocando o meu rosto sempre me fez ficar bem longe desse corte... o que também me levava a usá-lo sempre preso, seja num coque alto ou num simples rabo de cavalo.

As coisas foram assim até as férias que antecederam o oitavo ano. Na segunda semana de férias, marcamos de nos encontrar e ela me mandou uma mensagem toda animada contando sobre o seu novo visual. Fiquei, como qualquer amiga, ansiosa para ver e tentei imaginar o que ela poderia ter feito de diferente.

Quando a vi, nada batia com as minhas expectativas. O cabelo claro agora tinhas mechas azuis e cortadas em camadas até a altura do queixo; ela também se livrou da franja. Vestia uma regata de uma banda de rock e uma jaqueta de couro com muitos detalhes metálicos, um short jeans curto e rasgado e botinas pretas. Seus olhos mel estavam delineados fortemente por um delineador que eu achava ser azul e os cílios estavam o dobro do seu tamanho normal.

Aquilo para mim foi muito mais do que apenas uma surpresa. Toda a minha vida eu tinha visto a minha amiga parecida comigo e em duas semanas ela muda radicalmente? Posso te dizer que aquilo foi um choque enorme e não vou mentir, a primeira coisa que pensei foi que aquela pessoa não era a Sara que eu conhecia.

Sara percebeu a minha reação e, ao ver meu olhar, ela riu dizendo que somente tinha trazido para fora o que sempre esteve dentro dela e que eu deveria fazer o mesmo porque sabia que eu não era aquela garotinha sem graça que demonstrava ser. Aquela escolha de palavras era tipicamente dela e relaxei um pouco, mas demorou um tempo para me acostumar com o novo visual de minha melhor amiga.

Agora, nas férias de verão que antecedem o primeiro ano, eu nem consigo imaginar Sara de outra forma. Principalmente em momentos como o de instantes atrás: Sara me ligou toda animada para nos encontrarmos na casa dela porque seu irmão dela tinha finalmente chegado.

Eu já o conhecia, mas há alguns anos que ele viajara pra morar com seus tios na França. Sem contar o fato de que todas às vezes eu que ia para a casa dela ele estava enfurnado em um quarto. Bom, nós deveríamos ter por volta de onze anos quando ele foi e me lembro dela o zoando por ir para a França chamando o país de engomadinho e fresco. Nicolas ficou muito bravo quando Sara disse isso da primeira vez, mas aos poucos foi deixando para lá. Para falar a verdade eu nem me lembrava de sua aparência.

Sara chorou demais quando foi acompanha-lo no aeroporto. Sei disso porque voltou para casa chorando com sua mãe dizendo que já tinha dado de chorar. Quando perguntei disse-me que Sara estava chorando desde o aeroporto. Enfim, Nicolas manteve contato apenas com Sara e sua mãe pela internet, mas ela não o mencionava muito.

Não sei por que foi para a França, nunca me atrevi a perguntar. Sempre que tentei chegar perto de perguntar algo do tipo, o rosto de Sara mudava e se transformava em uma expressão chorosa.

Fui então à casa dela não muito ansiosa. Pelo menos achei que não estava, pois assim que parei de frente à porta da casa dela,  desceu um frio na minha espinha e eu tive vontade de sair dali naquele exato momento, mas qualquer chance que eu poderia vir a ter se perdeu assim que Sara abriu a porta com uma expressão irritadíssima. Ela tinha me ligado pouco tempo antes e parecia tão animada que estranhei sua expressão.

– Sei o que está pensando, Rexy – ela estava usando o meu apelido num tom chateado o que indicava apenas uma coisa. – Entra.

O irmão dela a magoara. Eu só precisava olhar para os olhos delineados - dessa vez de preto - e suas sobrancelhas franzidas que era fácil adivinhar o que tinha acontecido.

Entrei já na defensiva. 

Nicolas conseguira magoá-la em quanto tempo? Havia o que? Duas, três horas desde sua chegada? Como alguém consegue fazer isso? Eu agarrei o braço dela e ela me lançou um olhar agradecido. Esse cara já tinha me irritado e nem tinha falado comigo ainda. Isso é uma proeza que nem todo mundo consegue.

Entramos na sala espaçosa da casa dela com aqueles móveis antigos que a mãe dela adora e os sofás grandes e de couro. Sempre foi um lugar agradável para mim, eu e Sara brincamos muito ali quando éramos menores, mas naquele momento parecia que uma aura negra tomava conta do lugar.

Dona Flávia, mãe da Sara, levantou o olhar depressivo que tomava conta de toda a sua expressão e abriu um sorriso para mim. Não sei se estava feliz por eu estar ali ou por simplesmente estar interferindo naquela atmosfera. Se bem que dá tudo no mesmo. Antes que falasse alguma coisa meus olhos pousaram sobre o cara na ponta do sofá com a expressão entediada mexendo no celular.

– Roxy! – ela se levantou, e os olhos do cara também.

O cabelo loiro escuro dele estava preso em um pequeno coque e as sobrancelhas estavam arqueadas numa pergunta silenciosa. Os olhos mais escuros do que os de Sara questionavam a minha presença e sua boca estava apertada em uma linha fina. Usava um casaco preto e jeans com um sapa tênis bege.

Ele me olhou e olhou para Sara agarrada ao meu braço e soltou um risinho sarcástico. Isso me deixou puta da vida. Talvez instintivamente me coloquei a frente de Sara e arrumei minha postura franzindo minha testa. Dona Flávia percebeu no exato momento o que estava acontecendo.

– Roxy, que bom que chegou! – veio me dar um abraço e eu a abracei de volta me soltando de Sara por um instante. – Como já são quase sete horas achei que seus pais não deixariam.

– Ah, dona Flávia – eu disse com meu tom usual. – Sabe que meus pais já me mandaram pra cá pronta pra passar a noite – levantei minha bolsinha com minha escova de dente, celular e documentos (meus pais nunca me deixavam sair sem eles).

Enfim, eu não precisava levar mais do que isso, já tinha pijama e algumas roupas numa gaveta em seu quarto.

– Sim, tem razão! – seu riso era um pouco nervoso. – Por que vocês duas não...

– Mas mãe, ela acabou de chegar, por que não nos faz companhia?

Sua voz era grave e seu tom muito mais irônico do que eu me lembrava. Não tinha algum sotaque muito perceptível, mas dava para sentir quando puxava o "r". Dona Flávia o fuzilou com o olhar, e não sei por que, mas aquele jeito dele estava me irritando demais e... Bem, vamos esclarecer uma coisa: eu odeio rodeios.

– Qual o seu problema? – Sara pareceu se encolher quando escutou meu tom de voz. 

Eu odeio quando isso acontece.

– Roxy... – ela tocou meu braço levemente. Talvez estivesse olhando para mim preocupadamente, mas eu não tinha como saber. Estava encarando ele com todas as minhas forças.

– Qual é a sua, garotinha? – ele se levantou do sofá e percebi que ele era por volta de um palmo mais alto do que eu. – Mal chegou e já está assim?

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