Sara bateu na minha porta assim que deram oito horas. Olhei-me no espelho do quarto de meus pais e contive um suspiro pesado. Eu não estava gostando nenhum pouco daquilo, nunca gostei de multidões e não seria agora que ficar andando pelo bairro com vinte crianças me faria feliz.
Mas era Sara que tinha me convidado.
Para piorar fora ela que me deu a fantasia e eu não tinha escolha a não ser usá-la. Entenda que não era nada horrível ou fora do normal, mas para uma garota de onze anos se vestir de Moranguinho era bem constrangedor.
Se eu já não gostava de rosa, aquele vestidinho bufante e aquele chapéu com um morango e um laço gigante nele não contribuíram em nada para a minha felicidade... Pelo menos não tinha peruca.
– Rexy! – Escutei sua voz e me virei para olhá-la. O cabelo loiro estava solto e com grandes cachos. Sua fantasia era da... Bem, de uma das amigas loiras da Moranguinho, mas isso não importa. Enquanto eu estava ridícula na minha fantasia, a menina parecia que havia saído de um catálogo de moda. – Nossa, eu sabia que você ia ficar bem de Moranguinho.
Ela estava tirando uma com a minha cara e eu sabia disso. Sua voz tinha aquele tom sarcástico e eu queria bater na cara dela, mas não deu três segundos até que eu começasse a rir. Meus pais sorriram e saímos de mãos dadas para pegar algum doce.
Na verdade, se tivesse sido apenas nós duas, poderia ter sido bem mais divertido do que realmente foi.
O fato de ter que andar em fila com mais um monte de criancinhas – sim, nós éramos as mais velhas, todo mundo ali deveria ter na faixa de oito anos – fez com que levássemos muito tempo passando em todos os prédios.
Achei bem legal a organização que fizeram, entretanto. Na nossa rua só tinha prédio e para facilitar as coisas, cada um fez um tipo de balcão na frente da portaria com alguém responsável para distribuir os doces. Com o tempo, as crianças dos prédios começaram a descer para participar e acho que no final da comemoração estávamos em cinquenta crianças.
Imagine todos aqueles anjinhos.
Meus pais haviam sumido e eu tenho quase certeza que eles e mais um bando de pais saíram para beber ou fazer qualquer outra coisa que não fosse ficar ali. Companheirismo total.
De qualquer forma, eu nunca fui muito chegada a doces e eu provavelmente daria tudo a Sara quando acabasse, o que me fez pensar de que ela havia planejado tudo isso para ficar com os meus doces e tirar sarro da minha cara. Mas... Mesmo se fosse isso, tinha valido a pena.
Apesar dos gritos irritantes e choros desnecessários, ficar segurando a mão dela e fazer piadinhas sobre como a moça que era responsável por nós estava de saco cheio foi bem legal. Porém, é obvio que o pós-festa foi bem mais divertido.
Não. Pode ir tirando qualquer pensamento indecente da sua cabeça. Tínhamos apenas onze anos... Tá, eu sei que isso não é muito, mas não foi assim que eu quis dizer.
Era por volta de meia-noite quando voltamos para o meu apartamento e fomos nos trocar. Tiramos aquelas fantasias e a sensação de finalmente sair daquela bagaça foi impagável. Como podem passar o dia inteiro com isso? Pinica, coça e esquenta. Tenho pena de caras que fazem Papai Noel de trabalho, principalmente nos países do Hemisfério Sul.
Coloquei um pijama leve e que tinha corujas verdes de estampa, já Sara colocou uma camisola azul clara com um coelho dormindo na frente. Pensei que aquele era o meu tipo de fofo, não vestidos bufantes e monocromáticos.
Fomos para a sala e meu pai colocou o laptop apoiado no sofá para que pudéssemos assistir filmes durante a noite, mesmo tendo aula no dia seguinte. Tanto ele quanto minha mãe foram logo dormir e nos pediram para que não comêssemos todos os doces de uma vez. Era óbvio que não faríamos isso.
– O que você quer assistir? – Sara me perguntou e já foi desembrulhando bombons.
– É dia das bruxas, vamos ver um filme de terror – falei indiferente e torcendo um pouco nariz para ela. – Você sabe que nenhum deles vai fugir de você, não é? Não precisa enfiar cinco na boca.
Ela resmungou e eu suspirei. Abri o site e logo vi um filme que eu queria assistir desde seu lançamento. Atividade Paranormal: Tóquio. Eu sabia que Sara ia ficar com medo e pensei que talvez essa fosse a minha vingança perfeita.
– Que filme é esse?
– Lançou ano passado, me disseram que é bem melhor que o primeiro Atividade Paranormal – disse dando play e indo me sentar ao seu lado.
O filme começou felizinho como sempre. Adoro o jeito que muitos filmes de terror começam, sabe? O jeito que todos estão feliz e se divertindo e como do nada tudo acaba e em dez minutos toda a atmosfera de riso e felicidade desmorona e fica apenas a apreensão e o medo. O que posso fazer se gosto de filmes de terror?
Foi engraçada a sensação que tive quando logo no primeiro susto Sara segurou a minha mão. Sorri e me deliciei com a sensação de vingança, mas também com a sensação da mão de Sara apertando a minha toda vez que o momento ficava mais tenso.
Nos momentos finais do filme ela respirou fundo e me olhou nos olhos.
– Eu te odeio.
Ri e ela cruzou os braços na altura do peito. É claro que ela não me odiava e eu sabia muito bem disso. Para amenizar as coisas, escolhi um episodio de Hora de Aventura para assistir. Ela ficou emburrada nos primeiro cinco minutos, mas logo soltou uma risadinha.
Alguns episódios depois, nós desligamos o computador e eu acendi a luz da cozinha para não ficar tão escuro. Nem eu sou tão forte assim.
– Espero que esse desenho passe da terceira temporada, eu o adoro – disse Sara enquanto eu dava uma arrumada nos travesseiros e me deitava ao seu lado. – Sou muito infantil por gostar dele?
– Você está me perguntando isso depois de passar quatro horas usando a fantasia da amiga da Moranguinho? – Nós rimos e eu suspirei fechando os olhos. – Não, Sara.
– Por quê?
Eu não tinha uma resposta exata, porque na verdade eu estava apenas brincando. Entretanto, percebi que eu não achava que ela era realmente infantil. Na verdade, eu não sabia o que Sara era mesmo após mais de quatro anos juntas.
– Porque não é. Agora vai dormir. – Eu e minhas respostas autoexplicativas.
Após alguns segundos de silêncio, eu senti seus braços enlaçarem minha cintura e sua cabeça chegar mais perto do meu corpo. Meus olhos se abriram e vi que os dela estavam bem fechados.
– Estou com medo. – Eu teria rido, mas aquele não era o momento e meu riso se perdeu quando eu senti uma pontada de culpa.
– Desculpe por ter te feito assistir este filme tão tarde.
– Não é só do filme.
Os olhos mel dela se abriram e eu percebi que a luz fraca que a cozinha emitia os fazia brilhar de um jeito diferente. Um jeito bom e até mesmo um pouco mágico. Com o olhar lhe perguntei silenciosamente o que ela queria dizer com isso, mas apenas recebi um suspiro.
– Esquece. Não é nada demais.
Passei muito tempo, talvez tempo demais achando realmente que era nada demais.
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Dilema
عاطفيةRoxy sempre teve um temperamento explosivo e quando se tratava de Sara, sua melhor amiga, nada a impedia de defendê-la. Mas quando o irmão de Sara aparece e a maior briga de suas vidas acontece, Roxy começa a enfrentar sentimentos que nunca havia i...