"Nada é permanente, exceto a mudança." — Heráclito
Realmente eu tinha uma vida muito interessante. Era isso que eu tentava repetir para mim mesma ao olhar no espelho. Fitava meus olhos castanhos claro, minha boca pequena e sem cor, meus cabelos que caiam como grandes ondas. Havia aprendido sobre isso em um livro qualquer de autoajuda, porém eu continuava tendo a vida frustrante e desprezível de sempre.
Era muito triste pensar em ter uma vida assim e se fosse um tema de novela eu com certeza estaria chorando com dó dessa menina, afinal, eu chorava muito facilmente. Mas, essa era a realidade. Que triste realidade, sim, talvez. Mas era a minha realidade e eu já havia aprendido a conviver com ela.
Fitava o forro branco procurando algum defeito, alguma sujeira, em busca de alguma desculpa para continuar na cama distraída, enquanto ouvia os barulhos no andar de baixo.
— Não encosta em mim! — gritou minha mãe ameaçadoramente.
Logo depois de um breve silêncio, escutei várias coisas caírem no chão. Algumas, produziram um som alto e irritante, outras se quebraram. Coloquei o travesseiro no ouvido e me deitei de lado para abafar o barulho. Mais uma vez eu havia sido acordada por brigas.
— Você é uma vadia! E está criando nossa filha do mesmo jeito! — gritava meu pai entre dentes. A fúria era notória no seu modo de falar.
Meus olhos ardiam ao escutar aquelas palavras da boca de meu pai. Ele falava com um ódio que contaminava o ambiente. Uma mágoa impermeável.
E eu sempre acreditava que mágoas poderia ser contidas e transformadas em uma lembrança ruim, que não vale a pena ser lembrada. Porém, meu pai era a prova viva de que isso nem sempre era possível.
— Eu vou trabalhar por que eu não aguento mais ficar nessa casa. — urrou cuspindo as palavras e depois de um silêncio rápido, saiu batendo a porta.
Fiquei deitada na cama por mais alguns minutos. Eu já devia estar acostumada com toda aquela confusão. Mas, será que alguém poderia se acostumar? Ao contrário de ter um despertador, eu tinha meus pais.
Nem sempre as coisas eram assim, meu pai era um ótimo pai e sempre estava comigo, me ajudando, me acolhendo. Ele sempre dizia que queria ser meu melhor amigo, e não aceitava que mais ninguém fosse o melhor. Ele era a pessoa que eu podia contar, a pessoa que eu podia confiar.
Eu tinha uma ótima relação com ele e com minha mãe, porém depois que meu pai sofreu um acidente, eu me lembrava que tinha oito anos, ele voltou para casa muito machucado e mudado. Era como se estava sempre com raiva, dolorido e impaciente. Desde então, meu pai era grosso, ruim, não se importava com nada. Era frio e demonstrava a insatisfação dentro de casa. Uma insatisfação que surgiu do nada. E desde então eu procurei abrigo nos livros, procurei ler e viajar para outros mundos sem sair do meu quarto. Afinal, ler é um refúgio prazeroso, e eu vivia querendo fugir.
Depois de muito enrolar na cama, tomei um banho quente e senti meu corpo acordar, cada músculo reagia melhor naquele momento. O clima lá fora estava nublado, e ao sair do banho me deparei com uma leve brisa. Os raios caiam do céu repetidas vezes e eu sabia que uma chuva estava próxima. Eu sempre gostava de frio e chuva, sentir o frio na pele, o frescor, era confortante para mim.
Coloquei o uniforme de sempre da escola e uma calça jeans preta. Eu não sentia vontade de me arrumar ou de tentar chamar atenção. Afinal, a única atenção que eu recebia era negativa. Preferia ficar com meus livros. Eles me confortavam e me distraiam.
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Noites Sombrias
FantasyE se o mundo onde vivemos fosse totalmente maior do que somos capazes de ver? E se a vida fosse muito mais além do que podemos saber? A jovem Sara descobriu da maneira mais trágica como é crescer aos olhos de um demônio, e o quão grande pode ser o...