— Desculpa. — me expliquei rapidamente, ficando de joelho e pegando os papeis que haviam caído da minha bolsa e que eram molhados com os pingos que caiam do céu escuro.
— Eu te machuquei? – indagou com a voz rouca e sem emoção, parecia mais ser uma afirmação do que uma pergunta. Me entregou alguns papeis amassados, enquanto perguntava. Agia de uma maneira mecânica, como se estivesse calculando cada passo.
— Não. — respondi, me explicando e falando um pouco alto demais. — E-Estava distraída... tenho que ir. — completei depois de gaguejar.
Ele assentiu de uma maneira calma, e eu fitei seus olhos castanhos e profundos. Seus cabelos que estavam molhados e o seu jeito estranho. Como se estivesse sempre pensativo, conversando consigo mesmo.
Sai caminhando ainda arrumando os papeis dentro da bolsa e sem olhar para trás. Havia passado uma vergonha ao cair e a chuva estava me molhando por completa. Eu só desejava chegar em casa.
Nunca fui boa em mentir. Afinal, eu quase nunca havia precisado. Eu realmente estava assustada com aquele rapaz e sobre o que eu havia ouvido e pesquisado. Quando chegasse em casa iria rever e procurar saber mais. Era algo que me intrigava, algo para ocupar a minha mente. Como ele poderia ter sumido em um piscar de olhos? Como ele poderia ter falado sobre íncubo sendo que a única definição que encontrei me causou calafrios? As mesmas perguntas me atormentavam enquanto caminhava.
§§§
— Pode entrar. — disse, escutando as batidas ocas e repetidas na porta de madeira do meu quarto.
— Vou pôr a mesa, querida. — disse Mary, com a porta entreaberta e sem me olhar. Fitava o chão de carpete ou havia escolhido algum objeto para concentrar sua atenção.
- A-hã, já vou descer então. – respondi, repousando o livro no criado mudo de madeira.
Mary fechou a porta de uma maneira silenciosa. E eu fitei a minha cama bagunçada com um desejo enorme de voltar para ela.
Isso já havia virado rotina. Meus pais me evitavam olhar nos olhos depois que comecei a separar brigas deles. Evitavam falar comigo e eu não me importava. Ou, eu preferia acreditar nisso.
Minha mãe costumava ser alegre. Eu sabia que ela não estava mais ali, como eu gostaria, mas não conseguia entender o motivo. Eu amava minha mãe, mas amava o como ela era antigamente. O como ela tomava conta de mim e até enfrentava meu pai. Afinal, eu nunca entendi o motivo dela ter se casado com meu pai. Durante uma de nossas conversas em que ela segurou o choro, ela me disse que ele não era assim. Eu já havia falado a ela se ela quisesse se mudar dali, eu estaria com ela. Porém, ela se negou. Isso me causou muita raiva, por que eu continuaria separando brigas, continuaria em um inferno constante. Mas depois de um tempo, eu me tornei habitável nesse inferno. Eu estava ali, em corpo, porém em alma e em pensamentos eu estava longe, esse era o meu jeito de fugir da realidade.
Desci as escadas sem nenhum ânimo. Cada dia naquela casa estava sendo pesado e cansativo e eu sonhava com a hora em que teria minha própria casa e minhas coisas.
Comemos em silêncio. O barulho dos talheres dominavam o cômodo, acompanhados pelos suspiros longos e provocativos de meu pai. Mary na maior parte do tempo brincava com a comida, que depois iria toda para o lixo.
Quando todos terminaram de comer, meu pai me olhou com um olhar frio, irritado e repudiante e foi para a sala, se jogando em um sofá e afundando seu corpo imundo e velho lá. E minha mãe se encolheu em outro, fitando a televisão distraída.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Noites Sombrias
FantasíaE se o mundo onde vivemos fosse totalmente maior do que somos capazes de ver? E se a vida fosse muito mais além do que podemos saber? A jovem Sara descobriu da maneira mais trágica como é crescer aos olhos de um demônio, e o quão grande pode ser o...