Capítulo 27

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Passado três dias que chegou até Stanley, Lilian estava em definitivo instalada. Comprou um colchão para ter onde dormir e roupas de cama. Improvisou uma arara para colocar suas roupas e o resto ficou com o que o apartamento já tinha. Precisava economizar e assim que conseguisse juntar mais dinheiro iria tornando aquele lugar a sua cara. Assim era o que esperava que acontecesse.

Andrea levou Lilian até uma loja de carros. Lilian escolheu um fusca velho. E a rotina de Lilian seguiu assim nesses primeiros meses: do trabalho na lanchonete das seis da tarde até às três da manhã então voltava para o apartamento inóspito e dormia a maior parte do dia entupida de remédios.

Assim que abandonou o sofá de Andrea a insônia tornaria a tomar conta sem trégua. Uma vez na semana tinha que ir  para suas consultas com um psiquiatra que renovava os seus remédios. Essa foi parte do acordo quando foi solta. Esses eram os dias mais odiados por Lilian. Consultas que não acrescentavam absolutamente nada. Somente fazia perder tempo na estrada já que o médico mal a olhava, apenas renova o pedido dos remédios que Lilian retirava na farmácia.

E assim o tempo foi passando. O pedido que fez ajoelhada diante a vela na igreja a cada dia ficava mais distante. E assim os pesadelos retornaram. Os remédios pararam de fazer efeito. O desespero retornou para seu corpo. Andava sempre alerta como se alguém a espreitasse. Ouvia vozes praticamente o tempo todo. As vozes apenas sumiam quando estava na lanchonete ou na companhia de Andrea.

Todas as noites quando voltava para casa Lilian praticamente acabava com uma garrafa de álcool misturada com seus remédios e vários surtos psicóticos saiam dali. Lilian sentia dor novamente na alma e se machucava na esperança de conseguir acalmar.

E foi no dia de sua folga junto de seus demônios que naquele dia  estavam decididos a leva-la embora como se o seu contrato de estadia na Terra tivesse acabado. Aconteceria treze de janeiro de dois mil e catorze. Tomou todos os seus remédios de uma vez e bebeu a garrafa de vodca barata que comprou no mercadinho da esquina. A dona do estabelecimento já conhecia seus  gostos. A neve caia intensa. Frio de congelar a alma. Lilian andava de lado para o outro e os remédios não faziam efeito.

— Merda! — gritou — Anda logo! Não é isso que querem? — conversava com o vazio, não ela conversava com seus demônios. — Estou pronta, podem me levar! Andem logo com isso!

Lilian escutaria risos de crianças acompanhado de um vulto. Gelou. Nunca sentiu tanto medo quanto naquele momento. Pegou o casaco e a bolsa em cima da mesa e saiu correndo do apartamento. Olhava ao redor com os olhos arregalados. Desceu as escadas correndo colocando o cachecol em volta do pescoço. Já nos últimos degraus escorrega e quase cai. Em um reflexo rápido conseguiu segurar-se no corrimão.

Sentou ali no último degrau e tentava puxar o ar. A respiração estava falhando o ar não conseguia ir até seus pulmões. A madruga seguia escura e fria, a neve não dava descanso. A medicação estava começando a fazer efeito. E novamente aquele som assustador de crianças rindo.

Lilian salta de onde está e corre até a rua ficando em segundos coberta pelos flocos de neve. Entrou dentro do fusca velho e deu partida. Algo interessante. Aquele carro velho nunca pegava logo de primeira ainda mais em noites assim e justamente naquela pegou de primeira. Abandonou o bairro em que vivia e foi em direção à saída da cidade. Na cabeça dela uma voz falava "a ponte" e Lilian soube o que tinha que fazer: jogar-se lá cima e deixar que o rio congelado fizesse o resto.

Pisava fundo e o fusca ia cortando as ruas rapidamente. Lilian ignorava os avisos de cuidado sobre a neve e muitas vezes o carro chegaria a derrapar. A visão estava à medida que o tempo passava ficando cada vez mais embaçada. Assim que adentrou para o seu destino final, Lilian desviou os olhos da estrada e olhou em seu retrovisor e lá estava ele, sorrindo. Lilian viu a imagem do seu filho morto ali no banco de trás sentado em sua cadeirinha sorrindo.

Em meio a sua alucinação não pôde ver o vulto escuro que vinha pela ponte indo de encontro ao seu carro, apenas o barulho e o chocalhar a fizeram retornar até a realidade, porém não a tempo necessário de evitar a colisão, apenas sentiria uma forte dor em sua cabeça. Após isso apenas pânico. Apenas terror, medo, remorso, dor, tremedeira e finalmente o desmaio após perceber que outra vida havia sido perdida por sua culpa.

xXx

— Não está me pedindo, sou eu quem está sugerindo. Faça o que falei. — E  Dr. Isaac abandonou o quarto deixando Lilian sozinha.

Lilian não conseguia entender o motivo daquele homem que nunca a vira antes querer lhe ajudar acobertando o seu crime daquela forma. Via o que fez como outro crime que a levaria para mais fundo no inferno.

A cabeça estava confusa. O remédio que ele havia administrado estava começando a fazer efeito e assim volta a adormecer entre seus medos e temores. Horas mais tarde acordaria e aquele homem retornou em seu quarto. Lilian queria deixar aquele lugar de qualquer forma. O convenceu de deixa-la ir. Relutante o médico liberou sob a promessa de que retornaria no dia seguinte para uma avaliação. Algo que não faria.

No dia seguinte como era de esperado Lilian compareceu até a delegacia de Stanley para dar seu depoimento sobre o acidente. E fez exatamente o que o médico havia lhe pedido. Relatou da forma como foi combinado. Sabia que não estava fazendo certo. Por ela tinha contado toda a verdade. Que o atropelou porque estava sob o efeito de medicamentos agravado por uso de álcool. Mas o médico havia se arriscado e mentindo por ela. Se contasse a verdade ele também seria implicado e aquilo não era a sua culpa.

Saiu da delegacia pior do que quando entrou. Passou em frente ao hospital. Ficou ali parada estática como se seus pés haviam sido presos ao chão. Não conseguia entrar. Não conseguia se mexer. Era a culpa aprisionando. Quando os pés se mexeram não foram para dentro do hospital eles seguiram para o lado oposto e retornou para o seu apartamento, retornou para o seu inferno na Terra.

xXx

Três dias haviam se passado desde o acidente. Lilian ficaria reclusa apenas um. Não aguentou e pediu para o Sr. Cristóvão deixa-la voltar a trabalhar, que concordou desde que ela ficasse no primeiro turno até que seu carro fosse liberado.  Lilian sem opção  acabaria aceitando. Pelo menos poderia ficar algumas horas longe daquele apartamento sufocante e ver os rostos dos vivos. Era por pouco tempo. Pela conversa que teve na delegacia o seu carro seria liberado em poucos dias e assim a sua rotina seria restabelecida em breve.

O dia estava bonito. Frio como são todos os dias de inverno em Stanley, porém esse em particular havia sol e o céu estava completamente sem nuvens; o azul reinava. O barulho do sino no alto da porta de entrada alertou sobre a chegada de um cliente. E o coração de Lilian bateu descompassado quando pôde ver quem era aquele cliente.

Nunca o tinha visto ali. Na verdade nunca o tinha visto desde que chegou até Stanley, apenas soube de sua existência quando foi atendida por ele naquela madrugada no hospital. Dr. Theodore Isaac esse era o seu nome. 

xXx

E com esse capítulos fechamos mais um ciclo de Amargos Segredos. Espero que tenham se envolvido com a história da Lilian como aconteceu com a do Theodore.  O que estão achando da história? Beijos e obrigada por acompanhar! 

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