15 - O despertar de uma nova realidade

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A sensação era de que Sarah estava num donut, quentinho e cheiroso. O qual ela gostava de estar. Como se estivesse consciente dos seus pensamentos, o donut fechou o cerco em volta dela, envolvendo seus braços e pernas, aproximando-a do seu calor. Uma delícia acordar assim. Sarah adorava donuts.
Ela sentiu a respiração no topo da sua cabeça. Então abriu os olhos.
Donuts, por mais maravilhosos que fossem, não respiravam. Ainda tinham que comer muito arroz com feijão para se tornarem pessoas.
Ela estava na sala, muito provavelmente no sofá, virou-se para o lado oposto para se certificar que era aquilo mesmo que ela estava achando que estava acontecendo.
Era.
Aquilo mesmo, Oliver. Dormindo placidamente ao seu lado num sofá que apesar de grande, muito pequeno para duas pessoas altas como eles. Sarah não gostava de pensar neles dois como um único pronome. Dava margem para interpretações erradas. Ela não queria saber disso.
Oliver deslizou a perna entre as dela. Está vendo só? Era disso que ela estava falando. Muito embora tivesse passado o tempo todo no mais profundo silêncio.
Levantou-se depressa, de uma vez só. Oliver acordou no meio do seu caminho, um tanto quanto desesperado:
- O quê? O quê? Sarah, tudo certo?
- Tudo – ela respondeu sendo indiferente na hora de falar. – Eu só vou pro meu quarto.
Não tinha nada demais. Absolutamente nada demais. Ela estava calma como a maré. Até encarar a tempestade de ver vestígios no seu quarto daquilo que queria esquecer. Bateu a porta e voltou depressa.
- Aconteceu alguma coisa – não era bem uma pergunta, Oliver basicamente saltou do sofá.
- A corda – Sarah disse sentando devagarzinho. – Ainda tá lá.
Ouviu os passos dele indo rápido para lá. Não tinha dúvidas de que ele iria tirar todo e qualquer indício do que ocorreu na noite anterior. Mas que diferença faria? Tinha acontecido. Ela não tinha magicamente esquecido como gostaria que tivesse. Era real demais para ignorar. A dor na região lombar estava lá para comprovar.
Sarah nem sequer aguentava ficar muito tempo sentada.
- Se você quiser voltar lá, já tá tudo em ordem, juro – Sarah não se mexeu, ele continuou falando. – Eu ia arrumar ontem, essa ideia me passou pela cabeça, quando as coisas acalmassem, eu pensei. Mas aí você... Bem, deixa pra lá. Já tudo em ordem mesmo.
Existia um limite de frases que uma pessoa conseguia dizer sem obter uma resposta, Oliver deveria ter alcançado o limite dele. Sarah continuava deitada de barriga para baixo no sofá, tentando não se mexer enquanto ouvia Oliver se movimentar para lá e para cá na sala.
O sofá ainda tinha aquele cheiro, que não se parecia com donut em nada. Sarah não sabia de onde tinha tirado essa ideia. Era cada coisa que a gente pensava quando estava apenas meio acordada! Oliver cheirava a sol, sabonete de cor branca e familiaridade.
Sarah tinha uma linha de raciocínio suicida que para encobrir algo danoso pensava em outra coisa pior ainda. Só que não importava o que ela fosse pensar, ela podia começar a trazer à tona a morte da avó naquele mesmo momento, nada iria encobrir a dor atual. Talvez, quem sabe, um analgésico.
Kellen era a pessoa que sempre vinha preparada para o pior. Ainda que fosse tão cuidadosa a ponto de não dar chance do pior chegar. Sarah não entendia o propósito, mas bem que se aproveitava do kit de primeiros-socorros da amiga sempre que necessário. Coisa que vinha se tornando mais e mais frequente.
- Sarah? – Oliver perguntou entrando outra vez entrando na sua cabeça.
Seus passos tinham parado de sassaricar ao redor do cômodo, foram parar perto dela, à beira do sofá. Já fazia um tempinho. Até então ela tinha ignorar com sucesso.
- Hum.
O olhar dele tinha algo de assustador. Se ela estivesse tão mal quanto a expressão dele refletia, era hora de se internar. Mas aonde é que se localizava o hospital que tratava de almas dilaceradas? Os olhos dele a fazia pensar nesse assunto. Isso significava que ele estava pensando também?
- Você quer café?
- Pode ser.
- Eu vou lá fazer, tá? Que tal alguma coisa para comer? Tem torrada, tem bolo, tem tapioca. Eu aprendi a fazer. Alicia diz que é a melhor tapioca do mundo, você devia confiar nela.
- Só café mesmo tá bom.
- Tudo bem, ok, beleza. Não se mexe daí. Volto com ele num instante.
Ela não se mexeu mesmo. Não por seguir instruções nem nada, mas mexer doía. Ou ardia, vai saber. Longe dela ficar classificando corretamente a dor que não queria sentir.
Onde estava Kellen com sua caixinha medicinal? Não restava ninguém além de Oliver para perguntar.
- Alguma ideia sobre o paradeiro de Kellen?
- Acabei de acordar – ele disse da cozinha, o que era plausível. – Mas em algum momento antes disso eu ouvi meu celular vibrar, pode ter sido ela. Ele ta aí na mesinha do abajur, se você quiser checar.
Só para dar ênfase ao que ele falava, o celular vibrou mais uma vez. Belize Martins enviou uma foto. O ícone na tela não deixava dúvidas, eles eram amigos no Facebook.
- Senha?
- Cinco tentativas antes de eu falar – ele gritou da cozinha.
Sarah acertou na terceira. 0709, aniversário de Alicia, óbvio demais da parte dele.
Belize não só tinha mandado uma foto como também várias mensagens entrecortadas, feito um soneto, do tipo que ela mandava para pessoas que ela tinha intimidade. O eu-lírico de Belize dizia mais ou menos assim:
Oliver,
Sarah se conectou pela última vez a 10 horas atrás.
Nem vou gastar as pontas dos meus dedos pra digitar essa mensagem pra ela.
Só fala que a gente veio aqui na farmácia comprar remédios pra...
Você sabe.
Kellen acha também que comprar aquele chocolate finíssimo que ela gostar vai ajudar em alguma coisa.
Estamos há três vidas inteiras aqui procurando.
Eles não me deixam dirigir.
Aí então seguia uma foto da cara emburrada dela no banco detrás do carro. O sol brilhava no seu rosto fazendo sua pele parecer mais branca, seus olhos mais azuis. E com uma camada extra de lápis de olho preto embaixo. Vai ver fosse um filtro novo, Sarah não saberia dizer. Nem estava a fim de dizer alguma coisa, fechou o aplicativo sem responder.
No fundo da tela tinha uma foto de Oliver com o pai. Ele estava bem novinho nela, uns cinco ou seis anos, Sarah calculava, mas já tinha cara de Oliver. Era uma foto engraçada, dava para ver que tinha sido tirada na antiga sala da casa dele, o pai segurava uma coisa mínima, que Sarah supunha que era um dente, enquanto mini-Oliver estava todo sorrisos com a boca cheia de sangue.
Sarah acharia graça, se graça fosse uma atividade que ela estivesse exercendo.
- Meu primeiro dente mole – Oliver anunciou, colocando uma bandeja na frente dela. – Meu pai me desafiou a arrancar sozinho, fiquei o dia inteiro tentando. Mas não me dava coragem, sabe? À tardinha ele encheu o saco, ou eu tirava logo aquela droga que já estava praticamente pendurada, ou ele iria me levar ao dentista. Eu, como toda criança de cinco anos, odiava dentista. Então ele pegou na minha mão e puxamos juntos, ele me deixou gritar pela casa que eu tinha arrancado o dente sozinho.
- Ele era bem esse tipo de pessoa – Sarah concordou ao dar um gole no café e ignorar todo o resto da comida que tinha na bandeja.
- É, ele era.
Oliver comeu um pedaço do bolo, Sarah bebeu mais um pouco do café. Parecia que o silêncio ia durar, mas dali a pouco começou a barulheira.
- Quem aí quer chocolate?! – Belize balançava a barrinha vermelha na mão.
Sarah não queria, mas em consideração às três vidas inteiras que eles levaram para achar, ela colocou a mão para o alto como se estivesse respondendo à chamada.
- Não esquece de me oferecer um pedaço – Fábio entrou na sala com aparente bom humor.
- Me oferece dois! – disse Belize e esperou pacientemente com a mão estendida enquanto Sarah abria a embalagem.
Era impressão de Sarah ou tudo meio que parecia uma ficção? Podia muito bem ser culpa do seu juízo perturbado, o qual ela sentia que não podia mais confiar. Mas aquela conversa toda estava muito estranha, com traços de peça de teatro, ou ela estava ficando maluca. 
-Então, vamos cuidar desse corpinho? – propôs Kellen com um sorriso atarraxado no rosto assim que Sarah terminou de distribuir os chocolates.
Palmas para Kellen que conseguia interpretar sua fala daquele jeito. Sarah não conseguiria pregar um sorriso no rosto nem se viessem homens com furadeiras e parafusos. Aliás, ela não queria que viessem homens. Já bastava de homens por um tempo.
Ela só levantou e seguiu Kellen até o quarto.
Quão humilhante poderia ser sua amiga cuidar das feridas que você poderia ter evitado? Tudo bem, Sarah sabia que amigos eram para essas coisas. Mas ela queria ter evitado. Quem avisa amigo é, Kellen tinha avisado. E quem não escuta? O que é? Burro? Ingênuo? Ou culpado?
Sarah se via como um misto dos três, contudo, mesmo sendo tantas coisas, se sentia um tanto quanto vazia. Difícil de entender, principalmente quando não se quer pensar.
A melhor coisa a se fazer era se concentrar na dor que a higienização das feridas proporcionava. Ficou mais do que comprovado que ela não era masoquista, no sentido amplo da palavra, mas dentre as opções que tinha, era melhor se encolher quando Kellen pressionava o algodão molhado contra a sua pele do que se aventurar nas profundezas e horrores do seu pensamento.
- Se estiver doendo você fala que eu paro.
- Com certeza não vai doer mais do que doeu pra essas feridas serem feitas.
Kellen deixou o algodão caiu no chão.
Voltou ao seu trabalho como se nada. Mais uma para o time da negação. Sarah ficou durante um tempinho se achando bem acompanhada, num mundo ideal onde ninguém tocaria no assunto e ela poderia seguir com a vida como se aqueles machucados fossem de uma queda que ela tinha tido na escada que nem sequer existia naquela casa.
- Sarah, desculpa, eu só não sei o que dizer ainda – ainda, Sarah reparou.
- "Eu bem que te avisei" é uma opção.
Em resposta recebeu uma caixa de remédio vazia na cabeça.
- Tá na hora de você começar a conhecer a amiga que tem. O máximo que eu posso te dizer agora é que você vai ter que ficar sem um tempo em ir à praia. A menos que você queira ficar com manchas.
- Eu não quero.
- Que bom então que amanhã já é o último dia de carnaval.
Aquela foi a primeira vez na vida que Sarah Atteli ficou feliz com o fim do carnaval. Ela não sabia se essa conseguiria voltar a ser uma data comemorativa para ela.
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Esse capítulo foi 70% escrito no trabalho e no ônibus, mas apesar da procedência duvidosa dele, eu achei um capítulo muito ~aconchegante~. Espero que ele seja de algum conforto pra vocês também depois do baque que foi o capítulo passado.
Sarinha não vai mudar magicamente e, sinceramente, ainda não tá totalmente claro na minha cabeça a maneira que ela vai lidar com isso, se é que algum dia ela vai querer lidar.
Bem, quanto a mim, Invisível tá sugando minhas energias, tanto que o recadinho de hoje vai ser até curto.
Queria dividir com vocês que eu estou com uma estrela na testa agora (ela é dourada) e que isso sirva de incentivo para vocês estrelarem (E COMENTAREM) esse capítulo.
Beijos estrelados na cor de sua preferência.

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