Foi bom te conhecer

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Lucca olha concentrado pra frente, sem perceber o que ouço. Eu ouço concentrada, sem perceber o que vejo. Logo Lucca tira do rádio o pen drive que por tanto tempo eu quis ouvir. "Não Serena" "ah Lucca, vamos lá, eu já comecei a ouvir, você canta muito" e canta mesmo, ele parece não ter pressa enquanto desenha a melodia na minha cabeça, a voz que já tanto me fez rir, agora me traz uma melancolia impossível de expressar. "É autoral?" "Sim" "Quero ouvir" "Por favor S" "Tá, tudo bem" "Outro dia?" "Outro dia" eu não o culpo, há milhares de detalhes meus que se eu pudesse guardava pra mim mesma para sempre. 

Minha clavícula dói, mas isso não me impede de ajudar Lucca. Nós delimitamos em qual parte da parede queremos pintar, arrastamos o sofá e abrimos as latas e pincéis. "Não fica forçando o braço S, se não vai piorar, e nós não queremos que doa" "Não queremos" eu dou um sorriso, é engraçado o modo como se engloba na minha vida, eu nunca pedi isso pra ele, e é o que eu mais gosto. 

"Você não prefere ir colocando as molduras nas outras paredes?" "Sim senhor" eu sei que ele sossegará enquanto eu não parar de pintar a parede e ir fazer algo mais tranquilo, e não posso mentir, meu braço dói. 

Depois de um bom tempo nós terminamos, simultaneamente. Eu olho em volta e gosto muito do que vejo, preto e amarelo decorando a sala. Apenas os porta-retratos precisam de fotos, o resto está pronto. Me traz leveza ver tanta cor assim, parecia que a casa era muito cinzenta, Lucca soube trazer alegria até para a casa. 

A campainha toca e eu torço para que seja Jenna e Jake, não que tenhamos mais amigos do que eles, mas sempre que algo que desconheço aparece pra mim, eu temo que seja má noticia. Abro a porta sorridente, contente por poder mostrar á eles a decoração nova. Mas não é o meu casal preferido que me espera atrás da porta.

Um par de olhos verdes me encara.

Ele dá um passo para a frente.

Estende as duas mãos e me beija.

Um gosto amargo me invade, e um sentimento de traição também. Não há tempo pra que eu possa empurra-lo, Lucca faz isso por mim. "SAI DAQUI" eu consigo ouvir a voz calma rugir para os penetrantes olhos verdes. A voz que tanto me acalma agora me causa calafrios, e os olhos que já tanto julguei, se fazem acinzentados. "O que você quer aqui Philip?" "Preciso falar com você Serena. A sós" Ele invade a casa e eu pouso minha mão em seu peito sem delicadeza, talvez tenha sido intencional, "A sós Philip?" "Sim Serena, eu e você, sem Lucca" "Então vamos pra fora" "Ir para fora? Lucca que saia!" "A casa também é dele" Philip parece estar transtornado, enquanto observo a imagem do outro dono da casa sentado no sofá. "Eu não quero cena Philip, vamos logo com isso" ele desiste de brigar, vira as costas e abre a porta novamente. No corredor aberto posso ver a lua, as palmeiras e sinto o ar fresco, mas o clima não combina com a nuvem preta que nos circunda, "eu já sei de tudo Philip, não adianta mais fazer teatro, eu já sei que todas as vezes que fomos visitar nossa cidade, e todas as vezes que você dormiu nos seus pais. Era tudo mentira, era Pam que você encontra. Eu não sou burra" o cara na minha frente ri "Vamos combinar Serena, se você fosse mais esperta teria percebido bem antes" "Como é?" "Você precisa de mim, eu sou um bom advogado, eu te ajudo no caso dos seus pais, em troca você escuta o que precisa. Você é carente, em todos os sentidos possíveis, chega a ser engraçado, meio ridículo" "Philip, quem é você? EU sou uma boa advogada, eu estudo pra isso, e eu contratei uma melhor ainda pra me defender no tribunal" "EU SALVEI A SUA VIDA, É COMIGO QUE VOCÊ TEM QUE FICAR!" "NÃO ADIANTA NADA SALVAR A MINHA VIDA PARA DEPOIS TENTAR DESTRUÍ-LA!" "Você me deve tanta coisa Serena, você é tão mal agradecida" "Eu não te devo nada, quando gostamos de alguém nós não medimos as decisões tomadas para ajuda-los, você precisa aprender muito ainda Philip. Você pode tentar começar com não traindo todas as suas namoradas" "É natural trair, ou você se esqueceu que seu pai traia sua mãe?" eu não consigo reconhecer quem está parado na minha frente, e eu não consigo segurar as lágrimas, elas descem em monte e eu perco o equilíbrio. É como se o tempo todo ele fosse alguém que eu tivesse criado. Alguém que eu precisava que estivesse ao meu lado, por que eu mesma não estava. É isso que eu causo comigo mesma, eu não sou suficiente e acabo criando um personagem na minha cabeça para que isso aconteça. Quando percebo eu estou sentada no chão, com a cabeça entre as pernas e a mão livre com os dedos cravados no cabelo. Eu gostaria de sentir dor na clavícula agora, com certeza a dor seria muito mais aliviante. Olho para cima, Philip me encara com o mesmo olhar que eu vi na primeira vez que o vi olhando para Jenna. Eu descrevi como um olhar triste, de quem gostaria ter reciprocidade, mas eu estava errada, agora percebo. O olhar dele é de desprezo, eu sempre romantizei as coisas, agora eu entendo o por quê. É muito mais fácil tentar enxergar a vida através dos olhos de um poeta, qualquer dor se transforma em poesia, e assim a vida vai ficando mais leve. Mas eu não sou uma poetiza, e no momento a cena que vejo não poderia ser desconstruída para virar um texto da qual eu deveria levar á uma exposição. Talvez uma pintura, mas não posso mentir que gosto de ver Lucca acertando o queixo de Philip. Os dois cambaleiam para trás, Lucca me olha e novamente não me vê, ele é cegado por ódio, me pergunto o quão boa a pessoa tem que ser para chegar a um nível de estresse tão grande. Ele me protege, eu sinto isso, ele faz exatamente o que eu gostaria de fazer mas não tenho força. Ele acerta mais um soco. Eu ainda choro. Me pergunto se depois da decepção de Philip ainda terei vontade de amar até cegar. Mas a resposta está á minha frente, Lucca desce com cuidado até onde eu estou, levanta minha cabeça "Tudo vai ficar bem, prometo"

Talvez eu seja sim uma poeta, por que mesmo com a cena de Philip entrando no carro com Pam dirigindo, eu consigo encontrar paz no modo como Lucca me olha. Eu precisarei me reconstruir, me limpar e aprender a ser suficiente pra mim mesma. Mas mesmo após esse desastre, eu não posso deixar de ficar aliviada por conseguir ver o pôr do sol.


FinalmenteWhere stories live. Discover now