Capítulo 3

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Heitor narrando:

- India, se concentre, por favor - peço pela milionésima vez. Normalmente, só preciso lhe dizer qual a pose que eu quero que ela adote, mas hoje tenho que chamar por ela o tempo todo, parece até que estou a trabalhar com uma criança! Ela olha para mim, envergonhada e se esforça para prestar atenção. - Você consegue fazer uma espargata no ar e cruzar os braços ao mesmo tempo?

Ela dá impulso e faz o que lhe peço com tanta graciosidade, que parece até fácil, mas não é bem o que eu quero.

- Preciso de mais agressividade. Você não está pousando para uma revista de ballet, não precisa estar toda perfeitinha. Em vez de apontar os pés, dobre-os pelo calcanhar e me dê uma expressão mais dura e ao mesmo tempo de vencedora.

Me coloco por trás da câmara, olhando pela lente e a ajeito como pretendo, antes de levantar um polegar para ela. Aguardo, me preparando para a apanhar no ponto certo, com a tensão se acumulando nos meus dedos.

- Pode saltar agora - digo, em caso de ela ter falhado o sinal.

- O quê? - Ela abana a cabeça, como se estivesse estado noutro planeta e voltado tão depressa, que nem sabia onde estava. - O que... o que você quer eu faça, mesmo? - Pergunta num fio de voz.

Saio de trás da câmara e, sem uma palavra, começo a arrumar o material.

- O que você está fazendo? - Ela pergunta, olhando para mim em descrença. Assim que se apercebe que estou guardando as coisas, vem correndo para junto de mim. - Heitor?

- Para mim já deu - assumo, sem olhar para ela e enfio minha câmara dentro da bolsa própria. - Tenho mais que fazer do que ficar perdendo meu tempo com alguém que não está nem aí para aquilo que eu falo.

Me atrapalho com o fecho da bolsa e acabo deixando o tripé cair no processo. Xingo alto, deixando a bolsa de lado para apanhar o tripé.

- Mas Heitor, a gente não acabou ainda! - Ela fica me cercando nervosa e agitada.

Me levanto de repente, fazendo-a pular para trás num impulso. Olho para ela, puto da vida e nem isso me impede de notar a sua beleza, porque com ou sem maquiagem, India é uma das mulheres mais belas que eu conheço e não são poucas as mulheres com quem estive. Ela tem um rosto tão particular, que é daquelas pessoas que se você vê uma vez, não esquece mais e hoje, esse mesmo rosto está abatido e cansado. A Sónia fez um bom trabalho em disfarçar as olheiras, mas há coisas que a maquiagem não consegue esconder e assim, de um momento para o outro, minha irritação vai embora.

- A gente acabou sim, você não está em condições de fazer mais nada. - Me inclino de novo, para acabar de arrumar o tripé.

- Eu preciso dessas fotos, Heitor! Pelo menos me diga que há alguma coisa que se aproveite, preciso enviá-las até à próxima semana!

Reúno todo o material e vou até ao carro, sem responder. Abro o porta malas e coloco tudo lá para dentro, só depois me viro para lhe falar.
Descanso as mãos nos ombros dela, a olhando com firmeza. - Você precisa é de descansar. Eu não sei o que se passa contigo, mas é claro que você não está bem. - Ela baixa a cabeça e funga. - Me diz o que se passa, talvez eu consiga ajudar.

Ela arrasta as botas no chão, pensando no que dizer. Hesita um pouco, mas resolve falar.

- Você acha difícil conviver comigo? - Pergunta, ainda olhando para o chão. As minhas mãos caem nos lados do meu corpo, enquanto analiso a pergunta dela.

- Alguém falou isso para você? - Tento entender.

Ela olha para mim, com uma expressão grave. - Só me diz e seja sincero - pede, ignorando minha pergunta.

Penso um pouco antes de responder. - Eu amo trabalhar com você, não só porque dá sempre o melhor de si, mas também porque acaba sempre por ser divertido e ligeiro. Você tem sempre aquela aura alegre, com observações engraçadas sempre na ponta da língua. Não sei de onde é que você foi tirar a ideia de que é difícil conviver com você.

Com isto, ela abre o primeiro sorriso do dia e que sorriso! A abraço de lado, estreitando-a contra mim, contente com esse pequeno avanço e dou-lhe um beijo na testa, sentindo seu cheiro floral. India é talvez uma das poucas mulheres que parece indiferente a mim e isso me faz querê-la ainda mais. Para além de linda, ela tem uma personalidade cativante e eu gosto da maneira independente e forte dela de ser.

Quando ela me abriu a porta, com o cabelo escuro e encaracolado todo bagunçado, naquela camisola que lhe chegava bem no meio das coxas nuas e com os pés descalços, tive de recorrer a toda a minha razão para não a pegar mesmo ali. Nossa, ela tem umas pernas bem boas, torneadas e curvas, que ficam tão lindas com o seu tom de pele.

- Você se importaria de fazer esta sessão fotográfica novamente? - Ela me pergunta, interrompendo meus devaneios. India se afasta para me olhar, mas não quebra o abraço.

Sem querer, meus olhos descem para aquela boca de lábios generosos, pintados de vermelho sangue e quero muito beijá-los, mas me limito a responder.

- E quando é que eu não fiz algo que você me pediu?

India franze o cenho, pensando. - Acho que nunca. Então, tudo bem se te ligar depois para combinar um dia?

Assinto e lhe dou um beijo na bochecha, deixando-a ir.

A caminho da casa dela, reparo que ela se volta a fechar e o seu semblante se torna carregado novamente.
Sei que há mais qualquer coisa a incomodando muito, algo do qual ela não quer falar, mas por ora, não a pressiono e me limito a desfrutar da sua companhia.

Encarar É FeioOnde histórias criam vida. Descubra agora