Capítulo 29

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Santiago narrando:

Desde que saimos do estúdio que não consigo deixar de pensar no que aconteceu. Estou fazendo as coisas meio avoado, tudo pela metade e já voltei umas três vezes à despensa para ir buscar ingredientes dos quais me havia esquecido.

Fecho a porta do compartimento pela milésima vez e confiro minha mise en place incompleta, o que raramente acontece e que devo admitir, me irrita profundamente. Descasco a cenoura rapidamente, lavando-a em seguida e vou buscar o ralador. Posiciono-o sobre a tábua de corte, ralo a cenoura com perícia e sem me aperceber, meus pensamentos voam até à India, sentada no andar de cima, esperando pelo jantar que lhe prometi.

Já tive tempo suficiente para dar milhões de voltas em minha cabeça e tentar entender o que me levou a fazer o que fiz, mas não consigo explicar o porquê de ter apertado a India contra mim ou a razão de a ter beijado de forma relativamente íntima considerando que somos apenas amigos.

Já pensei que talvez tenha sido por causa da história da boca suja, visto que eu não menti quando falei que havia gostado do toque dela. Um único roçar do seu dedo no meu lábio foi o suficiente para despertar um desejo enorme de querer trocá-lo pelos seus lábios carnudos e macios, apenas a uns centímetros dos meus. O facto é que a vontade não se extinguiu mesmo depois das garotas aparecerem e após o meu queixo ser atingido por um joelho em movimento. Acho que até dá para entender porque minha mão acabou dentro da t-shirt da India e a minha boca no lóbulo da sua orelha.

O pior de tudo, é que ao contrário do que ela disse, eu em nenhuma circunstância pensei na Teresa ou me senti culpado de alguma maneira. Me senti foi confuso, porque apesar de ainda a ter no meu coração e ela ainda ser uma parte muito importante de mim, estar com a India já não parece tão errado como antes e a sensação de culpa e traição que me acometeu no dia em que acordei da primeira vez do seu lado, nunca chegou a surgir.

Por outro lado, tudo o que consigo pensar agora é no quanto gostei de a ter estreita nos meus braços e no quanto essa sensação permanece queimando em mim, em lume brando. Até seu cheiro me ine...

- Ah! - Grito alto, quando sinto uma fisgada de dor na ponta do dedo. 

Deixo cair o ralador e o pedacinho de cenoura sobrando e voo até ao lavatório, tentando não deixar cair o sangue em nenhum lugar perto da comida. Pressiono o pedal com o pé para abrir o fluxo de água e coloco o dedo sangrando debaixo dela.

 - Droga - xingo, de dentes travados. Dói para cacete.

Logo ouço os passos apressados da India, descendo escadas abaixo. Deve ter me ouvido gritar.

- O que aconteceu? - Ela entra pela cozinha a toda a brida e seus olhos são automaticamente atraídos pela gota de sangue que não consegui impedir que caísse na tábua. O seu rosto empalidece ao ver a gota vermelha.

- Ralei meu dedo - respondo com os dentes trincados de dor.

Ela se apressa até mim e tenta ver a ferida por entre água corrente. É ridícula a maneira como fico tão ciente da sua proximidade, considerando a situação. Não sei o que raio se está passando comigo. 

- Deixa eu ver - pede num sussurro. Levanto o pé do pedal, fazendo a água parar e observo o dano causado pela primeira vez.

- O corte nem é assim tão grande - comento. Faço uma careta quando o sangue começa a brotar novamente. Lavo de novo e volto a olhar com mais atenção, mostrando também para ela. Só reparo que algo está errado quando noto sua respiração ficar mais rápida e superficial. Olho para ela e me assusto ao ver como o seu rosto ficou tão pálido em tão pouco tempo, até seus lábios mudaram de cor.

Encarar É FeioOnde histórias criam vida. Descubra agora