Capítulo 34

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[Morro toda vez que olho para essa foto do mal. Tenho vontade de pegar numa bomba e rebentar com a coisa.
Boa leitura 🙂]

India narrando:

Sempre me perguntei qual seria a sensação de ter um único dia de ociosidade em casa, para não fazer absolutamente nada. Se soubesse que era tão mau quanto está sendo, nunca teria sequer cogitado essa hipótese. Não que esteja aqui por opção e não que esteja em casa só há um dia. Na verdade estou aqui enfiada há tanto tempo, que nem sei.

Depois de ter tido um acidente, depois de ter chorado o suficiente para a vida toda, ter acabado com todos os meus cigarros de emergência e de ter tido tantos pesadelos que meu cérebro se transformou numa massa cinzenta amorfa liquefeita, aqui estou eu, deitada no sofá, olhando para a aranha enorme e repugnante que decidiu fazer morada no teto alto da minha sala, sem fazer nada para a impedir.

Estou até invejando a bicha pela sua vida simples e sem preocupações, a não ser capturar insetos gordos e crocantes para petiscar. Ela nunca teria seu coração destruído por um aranhiço que lhe tratou melhor que qualquer outra pessoa, que a compreendeu e lhe fez o coração pulsar como nunca antes por causa daquelas patas peludas a acariciando o tempo todo, daquela boca beijando o seu pescoço e orelhas. Tudo bem que uma aranha não tem pescoço nem orelhas, mas aposto que o lugar entre os seus olhos funciona tão bem quanto.

A cena é que mesmo que houvesse um aranhiço que brincasse com seu coração azul cheio de hemolinfa, ela com certeza não se deixaria ficar para trás. Afinal de contas, não são as viúvas negras que arrancam a cabeça dos machos depois de fazerem o amor?
Quero me levantar para pesquisar e ter a certeza, mas meu cérebro parece desconectado do meu corpo e não consigo me mover nem um centímetro.

Pode até parecer mau, mas desse modo, não é só as pernas que não sinto. Também mal sinto a dor do meu coração rasgado, pisoteado e dilacerado por toda a porcaria a que tem sido sujeito desde a morte dos meus pais e da minha irmã. Eu nem sequer consigo sentir a falta deles assim. As memórias estão turvas na minha mente, misturam-se com a realidade, com os pesadelos, com os meus pensamentos.
Não sinto falta da Carla ou da Vi, do estúdio, ou até mesmo do San... Engulo em seco, quando um nó se forma na garganta à mínima lembrança desse nome.

Fecho os olhos com força, recordando o peso delicioso dele em cima de mim. Da sensação maravilhosa do seu toque, dos seus beijos, da sua mão na minha e me apercebo que afinal ainda sou capaz de sentir dor. É que até do cheiro dele sinto falta, do seu sorriso enviesado e daquela sua maneira intensa de encarar. E vocês sabem o quanto odeio que me encarem.

Arranjo forças para me virar de lado no sofá e me encolho toda, pressionando o peito com força, como alguém que pressiona uma ferida para tentar estancar uma hemorragia. Soluço com violência, sem nem ser capaz de deitar mais lágrimas, como se elas já não fossem produzidas depois de tanta choradeira.

Acabo por adormecer, acordando logo em seguida com a imagem da minha irmã sendo esfaqueada, impressa na minha retina. Seu sangue salpicado na minha roupa, na minha cara, nos meus lábios. Seus gritos horripilantes implatados no meu cérebro, junto com os meus próprios gritos de pavor e o som de carne sendo golpeada uma e outra vez. Acordo tão apavaroda e hiperventilando tanto que acabo desmaiando e só me apercebo disso, depois de acordar na sala imersa na penumbra.

Me sinto exausta como nunca antes, como se me estivesse afogando e estivesse completamente rodeada de água, meu corpo leve e à deriva, sem ouvir qualquer som a não ser o ruído abafado da água em todo o lado. Não faço ideia da última vez que comi, bebi água ou tomei banho, e sinceramente, nem sei se alguma vez me levantei daqui para ir ao banheiro.

Encarar É FeioOnde histórias criam vida. Descubra agora