Capítulo 6

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India narrando:

Há treze anos atrás...

Odeio esse lugar. Odeio-o quase tanto quanto odeio o marido da minha tia perdedora, que nem é capaz de fazer face aos maus tratos contínuos do estupor com quem está casada.

Visto as calças de treino pretas e justinhas que costumava usar a caminho da dança quando estava em Los Angeles, ponho um pullover cor de rosa e coloco um casaco na mochila, só por prevenção. Pelo menos não é muito frio aqui e a língua não é assim tão diferente do espanhol. Claro que não entendo quase nada, mas tem algumas similaridades. Com o inglês é que já é bem diferente, minha língua materna.

Ponho minha mochila, encosto meu ouvido à porta e me ponho à escuta.

Não ouço nada, então decido que é seguro sair. Destranco a porta, tentando fazer o menor barulho possível, tiro a chave da fechadura e rodo o manípulo com muito cuidado. Estou trancando a porta do quarto, quando sinto um formigar na nuca que faz meus pêlos se arrepiarem.

- Você não confia em nós?

Viro minha cabeça lentamente e vejo o marido asqueroso da minha tia, encostado à parede do corredor, usando apenas umas calças jeans surradas e uma camisa branca aberta, imunda, com a barriga peluda e grande à mostra. Seu cheiro azedo a bebida e ranço é tão mau, que fico enojada.

Meu coração começa a bater feito louco e a sensação de medo aperta meu estômago, mas tento deixar meu rosto o mais neutro possível.

- Confio - minto. 

- Porque está trancando a porta do quarto, então? Acha que vamos roubar alguma coisa?

Não respondo.

Ele se desencosta da parede e se aproxima de mim. Faço um esforço enorme para não tapar meu nariz, assim tão perto seu cheiro é quase insuportável.

- Como se você tivesse alguma coisa de valor,  como se você fosse alguma coisa de valor - zomba, me fazendo engolir em seco ao me magoar com aquelas palavras.

- Eu tenho valor.

- Tem, é? - Ele se inclina mais perto de mim e eu dou um passo para trás. - Quem disse? A vaca da sua mãe ou o cachorro do seu pai?

Fecho minhas mãos em punhos, guardando a chave numa delas, e meus olhos se enchem de lágrimas de fúria e saudade, mas mesmo assim não respondo.

- Porque você não devia acreditar neles, não. Eles só te usaram para o dinheiro - sussurra, como se fosse um segredo - Fizeram milhares de dólares só com você, a dançarina prodígio.

Eu abano minha cabeça. Sei que é mentira, ele só quer me envenenar porque me odeia. 

- Isso não é verdade - contradigo, abanando a minha cabeça sem parar.

- Não é verdade? - Ele grita, me assustando muito e eu corro para longe dele, sem me preocupar mais em proteger meus sentimentos. - Onde está o dinheiro então? Me diz onde está! - Ele grita alto, enquanto corro até à porta de casa, inflamada pelo medo.

Tento abri-la mas está trancada e eu começo a entrar em pânico quando o vejo vindo na minha direção com o rosto todo desfigurado da fúria. Meu Deus, o que eu faço agora?

Começo a chorar e a gritar por ajuda, porque sei que minha tia está em casa, mas como sempre ela não faz nada para enfrentar o marido. Estou sozinha, nessa.

- Você não vai a lado nenhum, sua filha da mãe! - Ele xinga, quase me alcançando. 

Grito desesperada. Sem saber o que fazer, corro até à cozinha para ganhar mais tempo e saio para varanda, sabendo por certo que estou  encrencada, porque a única saída que eu tenho é saltar por ali. Olho para baixo, aflita, considerando o caminho por onde posso ir e ouço os gritos dele cada vez mais perto. Olho para trás e ele está entrando na cozinha.

- Para onde você vai fugir agora? - Pergunta, todo vermelho e arfando, já se dando por vencedor. - Te apanhei.

Olho de novo para baixo e não penso duas vezes, coloco a chave do quarto no bolso apertado das minhas calças e passo uma perna de cada vez por cima da proteção. Ele estaca ao ver o que eu estou fazendo e seu sorriso debochado de vitorioso se torna numa carranca horrenda. Ele vem correndo até à varanda, contornando a mesa da cozinha que ocupa um grande espaço bem no meio dela e eu me apresso.

Me deixo escorregar um pouco, agarro a proteção e fico a balançar no ar, apenas segura pelas minhas mãos. Olho para baixo, me preparando e quando ele me alcança, xingando muito, me largo.

🔘🔘🔘

Sobrevivi e estou inteira. Minhas costas estão doendo um pouco, mas a mochila, fofa com o casaco que tinha lá dentro, amparou minha queda. Graças a Deus que eles vivem num primeiro andar baixo, senão já era.

Passo pelas aulas num estado completo de transe. Fiquei muito abalada com o que aconteceu esta manhã e estou com um medo louco de voltar para aquela casa.

No intervalo para o almoço, me enfio numa cabine do banheiro e choro sem parar. As saudades da minha família, do meu lar, da minha casa, me corroem e não sei o que será do meu futuro no lugar onde estou morando agora ou se haverá um.

De repente, ouço um estrondo e fico alerta no mesmo instante. Seco as lágrimas com o pullover e espero, com os olhos muito abertos.

Desta vez percebo o que é, estão dando pontapés na porta da cabine onde eu estou. Não entendo o que estão dizendo em português, mas pelos risos que se seguem, sei que não é nada de bom. As meninas que me vêm chateando desde o meu primeiro dia na escola, continuam batendo na porta e rindo de mim sem piedade e eu só consigo pensar na porcaria que é a minha vida, que devo ser amaldiçoada, porque não é justo. Não é justo...

As lágrimas começam de novo a cair e assim que as meninas se vão embora, começo a chorar novamente, soluçando muito e só paro até ficar exausta e drenada. Saio da cabine, lavo minha cara e vou para a fila gigante do almoço.

Eu odeio as filas na escola, estão sempre tão cheias de adolescentes gritando e falando alto e me olhando de uma maneira estranha. Fico na minha, tentando passar despercebida e estou mais ou menos na metade da fila, que está ainda mais cheia do que estava, quando de repente sinto alguém baixar minhas calças tão rápido, que nem percebo o que está acontecendo até estar nua da cintura para baixo à frente de mais de metade da escola.

Alguém aponta para mim e grita alguma coisa em português e todos me olham, antes de eu ter tempo de fazer alguma coisa a não ser puxar o pullover para baixo e me esconder o máximo possível. 

Sinto alguém se chocar contra mim, por trás e viro minha cabeça, e por mais uma vez nesse dia horrível, o medo aperta meu estômago, mas quando vejo o olhar de preocupação nos olhos cor de mel do garoto que chocou contra mim, percebo que ele não me quer fazer mal, muito pelo contrário. Ele tem um casaco à volta da minha cintura, me cobrindo, e seus lábios estão se movendo com urgência, mas não percebo nada do que ele está dizendo.

Não tento entender, visto minhas calcinhas e calças o mais rápido que posso e saio correndo dali.

Desde esse dia, nunca mais me esqueci do garoto de olhos cor de mel que me ajudou quando todos se estavam rindo de mim.

Encarar É FeioOnde histórias criam vida. Descubra agora