33 - Antonie Keyne

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"Prianka Abdala? De O Refúgio dos Hastings?"

O garoto fixava seus olhos no Imaginare e eu ficava cada vez mais nervosa. A qualquer momento ele podia recitar um Abracadabra  louco e trazer um dragão medieval para a biblioteca.

"Eu sei. Pode me chamar de louco por estar apaixonado por uma personagem de livro, mas eu não estou nem aí. Aliás, se você está aqui, me impedindo de usar isto é porque sabe que é perfeitamente possível isto. Não é?"

Os olhos azuis daquele garoto pareciam muito mais tristes do que surpresos e assustados. A forma que ele olhava para o livro. Como se ele já o tivesse tocado antes... Ele passava a mesma sensação que eu tinha quando o tocava, só que muito mais familiarizado.

"Você conhece Prianka Abdala?", questionei baixinho.

Um sorriso torto se abriu em seu rosto e ele segurou firme o Imaginare debaixo do braço.

"Você parece uma daquelas garotas que não descansam até conseguirem o que querem. Quer mesmo saber?"

Assenti. Ele cruzou os braços e olhou para o lado, sorrindo. Depois, olhou para mim.

"Qual é o seu nome?"

"Brenda Mitchoff."

Ele ofereceu a mão para um cumprimento e eu correspondi.

"Prazer Brenda. Sou Antonie Keyne."

Eu e Antonie saímos da biblioteca alguns minutos depois, dispostos a contar um para o outro a nossa história. Ele não deixara o Imaginare lá. Ao marcar seu nome para levá-lo, junto a bibliotecária antipática, percebi que Antonie era a única pessoa que eu não conhecia da lista de aluguel do livro. E ele o pegava com muita frequência.

Procurar um lugar para conversarmos sozinhos, sem parecermos dois lunáticos foi difícil. Mas conseguimos encontrar um auditório vazio para que pudéssemos fazer isto.

Nos sentamos nas últimas cadeiras do lugar. Estofadas e vermelhas. Todas as demais vazias, fazendo do silêncio nosso maior companheiro.

"Então... Quem começa?", questionei um pouco sem graça.

Ele começou.

"Há quase um ano e meio eu tinha que fazer um trabalho pra aula de economia, em um sábado mais especificamente, e meu professor demoníaco exigiu que nas referências bibliográficas tivessem livros. Livros de verdade. Então, fui até a biblioteca caçar alguns. Depois de algumas horas digitando sobre economia moderna, teorias das análises das riquezas das nações e toda essa coisa, me dei o direito a uma folga para terminar O Refugio dos Hastings. Eu... Já tinha lido ele umas cinco vezes. Aquela era a sexta. Aquele era, ou melhor, é o meu livro preferido. E ao invés de focar no trabalho, tudo o que eu conseguia pensar era em como o mundo sempre fora injusto, em como o próprio autor era injusto e porque uma garota tão boa como Prianka tinha que sofrer tanto durante a história e porque ter aquele destino tão...".

Os olhos azuis do garoto se perdiam no enorme quadro no final da sala. Depois fitaram a capa ornamentada do Imaginare.

"A segunda metade do livro é a que eu menos gosto, mas ao mesmo tempo eu amo. Ver os Hastings se arrependendo por tudo o que a fizeram passar... Ver a família de fachada desmoronar. Mas ainda assim não me conformava mesmo com tal final."

Eu não poderia dizer que O Refúgio dos Hastings era um dos meus livros preferidos porque não era. Justamente pelo fim de Prianka Abdala. O livro basicamente conta a história dela, uma garota refugiada e ao mesmo tempo testemunha do governo, vinda de uma das principais células terroristas do Irã. Como proteção, Pria foi enviada para morar com os Hastings, uma tradicional família branca americana que morava na cidade fictícia de Sterlinward, no Oregon. A protagonista do livro nunca foi Prianka. A história, apesar de ser narrada em terceira pessoa, tem como foco os pensamentos de Lianna Hastings, a filha mais velha da família e principal tormento de Pria. Nunca gostei de livros que me fizessem sofrer, e por isto li apenas e uma única vez a história de Prianka.

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